13.9.08

Especial Abolição 120 anos


CARTA DO EDITOR

Às vezes, o tempo parece ser um caprichoso inventor de disfarces. Eles vão desenhando as épocas em tons suaves e com certa brandura.
Cento e vinte anos depois do evento mais importante da História do Brasil, assinalado pela abolição da escravidão em 1888, é preciso entender sem retoques o que aconteceu. É uma tarefa dolorosa, mas inevitável.
A Revista de História da Biblioteca Nacional preparou um Especial sobre o tema, mobilizando diversos historiadores para nos ajudar a alcançar as origens desse processo que não terminou.
Longe das ilusões que foram se depositando ao longo dos anos, eles revisitam, em painéis acelerados, o drama marcante de uma época que assistiu ao fim de séculos de trabalho compulsório, degradante e cruel, mas economicamente confortável para certas elites. Os artigos interrogam personagens que souberam perceber a dimensão do que se passava, examinam situações estruturais, como a formação educativa, a cultura e as condições de produção, e evocam a disputa pelo imaginário abolicionista, Acima de tudo, os grandes atores desse processo são colocados em primeiro plano.

ABOLIÇÃO EM OITO TEMPOS

O texto é curto e direto: “É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário”. Duas frases que mudariam o nosso futuro. Com o fim do cativeiro, o país entraria em uma nova fase, próspera e igualitária. Festa, júbilo, comoção coletiva nas ruas.
Cento e vinte anos depois, a promessa sugerida naquele pedaço de papel soa envelhecida como o próprio. Em que ponto do caminho as coisas deram errado?
Provavelmente, antes mesmo daquele 13 de maio de 1888. Para voltar no tempo e tentar entender o modo como a Abolição foi concebida e se desdobrou, convidamos oito estudiosos a refletir sobre diferentes aspectos daquele momento histórico.
O resultado revela o “jeitinho brasileiro” de acabar com a escravidão. Do ponto de vista religioso, nos separamos do destino norte-americano. Na esfera política, a autoria do feito foi disputada por republicanos e monarquistas. A princesa Isabel virou santa, a reforma agrária foi engavetada e o papel dos próprios negros, ignorado. Para completar, um vôo até a África de hoje, onde a escravidão persiste.

Luciano Figueiredo

EM NOME DE DEUS

Foi muito diferente o papel exercido pela religião e pelas igrejas nos movimentos abolicionistas dos Estados Unidos e do Brasil.
O mais forte componente dos abolicionismos britânico e americano foi justamente a convicção religiosa. Os quakers foram pioneiros na luta contra a escravidão na Grã-Bretanha. Esse grupo religioso puritano, conhecido como Sociedade dos Amigos, engajou-se na luta desde o final do século XVII. Apesar de não haver condenação da escravidão na Bíblia, eles decidiram que sua prática era incompatível com o princípio da igualdade de todos os homens perante Deus. Aliados a outros religiosos, organizaram-se em sociedades abolicionistas, mobilizaram a opinião pública e pressionaram o Parlamento para aprovar medidas contra a escravidão. Em 1807, esses militantes conseguiram sua primeira grande vitória quando o Parlamento decretou o fim do tráfico de escravos.
A atuação dos quakers estendeu-se aos Estados Unidos, onde a luta foi muito mais dura, pois lá a escravidão estava dentro do país. Mesmo assim, na década de 1830 já fucionavam várias sociedades abolicionistas, todas movidas por valores puritanos e organizadas por quakers, metodistas e batistas. A mais importante foi a American Anti-Slavery Society, criada em 1833.
No Brasil, nem o pensamento abolicionista se baseou na religião, nem a Igreja Católica se empenhou na causa. Pelo contrário, padres e ordens religiosas eram coniventes e cúmplices da escravidão. A Bíblia, argumentava-se, não proibia a escravidão e, afinal, o que importava era a liberdade da alma livre do pecado, e não a liberdade civil. Além disso, padres eram empregados do Estado, cujos interesses tinham dificuldades em contrariar. Nosso abolicionismo baseou-se antes em razões políticas e humanistas.
Esse contraste ajuda a entender por que, nos Estados Unidos, a abolição foi seguida de forte ação em favor dos ex-escravos, sobretudo nos campos da educação, dos direitos políticos e do acesso à propriedade da terra. Entre nós, nada foi feito, nem pelo Estado, nem pela Igreja, nem pelos particulares.

José Murilo de Carvalho

SENSIBILIDADE INGLESA

Quando se trata de avaliar os motivos da pressão inglesa pelo fim do tráfico atlântico de escravos, paira nos bancos escolares do ensino médio o estigma do “Ocidentalismo” - crença que reduz a civilização ocidental a uma massa de parasitas sem alma, decadentes, ambiciosos, desenraizados, descrentes e insensíveis.
Não podem ser levadas a sério teses que vinculam a ação britânica a imaginárias crises econômicas do cativeiro do Caribe na passagem do século XVIII para o seguinte. O tráfico seguia lucrativo e não passava pela cabeça de nenhum líder inglês sério que a demanda americana por bens britânicos pudesse aumentar com o fim da escravidão. Mas tudo isso continua a ser ensinado aos nossos filhos e netos.
O abolicionismo britânico tinha natureza cultural e política. Na vanguarda do movimento estavam ativistas que não abriam mão da crença na unidade do gênero humano, com destaque para os quakers, que rejeitavam o uso da violência com o mesmo empenho com que recusavam qualquer sacramento ou hierarquia eclesiástica.
Tratando-se de convencer por meio da palavra e de petições antiescravistas, ajudava contar com uma sólida tradição parlamentar, desfrutar de liberdade de imprensa e circular pela eficiente rede inglesa de comunicações. Mas o pulo do gato do mais ambicioso projeto de persuasão política surgido no Ocidente antes do advento do marketing moderno foi insistir no sofrimento do africano como metáfora do arbítrio vivido pelo inglês comum – o único meio de escamotear o fator racial que os apartava.
O rapto de cidadãos reproduzia as tripulações da mais poderosa Marinha do mundo – dezenas de milhares de homens foram capturados por grandes armadas do serviço naval durante as guerras napoleônicas. Do mesmo modo, ainda nos planos das sensibilidades, as terríveis condições materiais das primeiras gerações de operários britânicos estabeleciam pontes entre as trajetórias do inglês comum e as dos milhares de escravos capturados na África. Eis o fermento para a abolição do tráfico em 1807, da escravidão na década de 1830 e da legitimação moral dos aprisionamentos feitos pela Royal Navy até a segunda metade do século.
Claro que tudo isso justificou as posteriores conquistas coloniais na África e na Ásia. Mas a aventura abolicionista britânica bem merece uma estátua em cada uma das praças mais importantes das antigas sociedades escravistas das Américas.

Manolo Florentino

OUÇAM SALUSTIANO

Em 1889 um grupo de libertos da região de Vassouras, no Rio de Janeiro, endereçou a Rui Barbosa uma carta na qual exigia instrução pública para os seus filhos. Vivia-se um período delicado; a escrvidão fora extinta havia pouco tempo e a monarquia estava em colapso. Os signatários da carta se declaravam republicanos e diziam que foram eles, os ex-escravos, e não a família real, os autores da abolição. Esta declaração de protagonismo não agradava a Rui Barbosa (1849-1923) e a outros emancipacionistas mais conservadores, para quem a abolição era um problema nacional que tinha sido resolvido pelos “cidadãos”, os “homens esclarecidos”, categorias que não incluíam escravos e libertos.
Mas nem de longe o fim da escravidão foi algo decidido e encaminhado somente pelos senhores brancos e doutores do Império. Desde que aqui aportaram os primeiros tumbeiros, as autoridades policiais e políticas eram sobressaltadas por fugas e inssurreições escravas a comprometerem, dia após dia, os negócios, o sossego e a autoridade senhorial.
Na segunda metade do século XIX, a relevância da rebeldia negra para a falência do escravismo ficou ainda mais evidente. A historiografia está repleta de personagens negros que tinham na abolição a sua principal causa, como Luís Gama, José do Patrocínio e Manoel Querino. Houve outros menos famosos, mas também contundentes propagandistas da liberdade negra, como um certo Salustiano.
Ele ficou conhecido na crônica baiana como o orador do povo, graças à veemência com que discursava a favor da abolição e em apoio a José do Patrocínio sempre que se desincumbia dos seus afazeres de sapateiro. A pregação de Salustiano contrariava de tal maneira a ordem vigente que um delegado de Cachoeira, no Recôncavo baiano, chegou a solicitar ao chefe de polícia orientação para fazer “calar o dito preto”.
Ousadia foi a tônica da atuação dos negros que lutaram contra a escravidão, inclusive às vésperas da abolição. Há várias notícias do envolvimento de libertos africanos com sociedades abolicionistas. Muitos acoitavam escravos fugidos, ou seja, os escondiam enquanto advogados faziam correr na justiça ações de liberdade.
A intensidade das revoltas e fugas coletivas foi uma das maiores evidências da crise do escravismo. A movimentação negra foi tão decisiva que um dos argumentos abolicionistas era de que só o fim do cativeiro libertaria o homem branco, visto como refém da resistência dos seus escravos.
Tinham razão os libertos de Vassouras ao reinvindicar a autoria da abolição.
Talvez por terem sido os ex-cativos os legítimos autores da sua liberdade, as comemorações do 13 de maio só existem hoje em comunidades negras, a exemplo dos camdomblés do Recôncavo baiano e dos congados do Sudeste.

Wlamyra R. de Albuquerque

A TERRA PROMETIDA

Diversos projetos abolicionistas invadiram a cena política brasileira no último quarto do século XIX. O de André Rebouças foi um dos mais radicais. Talvez por isso tenha acabado derrotado.
Mulato, baiano, filho de um membro proeminente da elite política imperial, Rebouças aclimatou-se desde muito cedo à vida na corte. Formado engenheiro militar aos 22 anos, dedicou-se à modernização de portos e à construção de estradas, para dotar o Brasil de infra-estrutura compatível com a chamada Segunda Revolução Industrial, que mobilizava a imaginação técnica de duas jovens nações emergentes: Estados Unidos e Alemanha. No entanto, frustrou-se em sucessivas iniciativas para a modernização material do país.
Sua vida foi reanimada pelo abolicionismo. Era o primeiro movimento de formação de opinião no Brasil, e a ele o engenheiro e empresário emprestou toda a sua energia. Dedicado a compreender os mecanismos que emperravam o desenvolvimento do país, chegou à conclusão de que vivíamos um bloqueio estrutural para a emergência de indivíduos livres. E que a libertação dos escravos, por si só, não seria suficiente. Entendia a abolição como um primeiro passo, ao qual se seguiria uma necessária eliminação do monopólio da terra, pois a autonomia individual só seria possível com a transformação do ex-escravo em pequeno produtor independente. Era este, para Rebouças, o único caminho de libertação dos homens pobres do campo, pretos ou brancos, ex-escravos ou imigrantes.
Sua convicção resultou em diversas propostas, como a do imposto territorial progressivo. No entanto, como os outros liberais brasileiros de seu tempo, ele temia que uma revolução agrária e popular resultasse em guerra civil. E assim viu cancelado seu projeto de refundação nacional. A partir de meados dos anos 1880, passou a considerar que somente o imperador poderia dirigir o processo de libertação dos escravos e uma eventual reforma agrária. Por isso, quando D. Pedro II é banido, Rebouças conclui que não tem mais o que fazer no Brasil, e opta por exilar-se na ilha da Madeira.
Suicida-se em 1898, convencido de que a civilização brasileira, tal como a da Grécia antiga, se extinguira. Com a diferença de que, por aqui, ela sequer florescera.

Maria Alice Rezende de Carvalho

A SANTA E A DÁDIVA

“Meu caro Barão (De Penedo). Esta feita a abolição! Ninguém podia esperar tão cedo tão grande fato e também nunca um fato nacional foi comemorado tanto entre nós. (...) Isabel ficou como a última acoitadora de escravos que fez do trono um quilombo (...) A monarchia está mais popular do que nunca”. Assim Joaquim Nabuco descreveu os dias de júbilo que se seguiram ao 13 de maio de 1888.
A Lei Áurea era mesmo popular, e conferia nova visibilidade à princesa Isabel e à monarquia. No entanto, politicamente, o Império tinha os seus dias contados, ao perder o apoio dos fazendeiros do Vale do Paraíba. Apesar do clima de euforia reinante, parecia ser o último ato do teatro imperial.
Mas, às vezes, o último também é o primeiro. Em meio a uma sociedade de marcas pessoais e de culto ao personalismo, a abolição foi entendida e absorvida como uma “dádiva”. Um belo presente que merecia, portanto, troco e devolução. Isabel converte-se em a “Redentora” e o ato transforma-se em mérito de “dono único”. Decadente e falida como sistema, a monarquia recuperava força no imaginário ao vincular-se ao ato mais popular do Império. A “realeza política” associava-se a uma “realeza mitificada”, quase mágica, senhora da justiça e da segurança.
Nos jornais e nas imagens de época, Isabel passa a ser retratada como uma santa a redimir os escravos, que aparecem sempre descalços e ajoelhados, como a rezar e a abençoar a padroeira. Já a princesa surge de pé e ereta, contrastada com a posição curvada e humilde dos ex-escravos, que parece manter a sua situação – se não mais real, ao menos simbólica. Aos escravos recém-libertos só restaria a resposta servil e subserviente, reconhecedora do tamanho do “presente” recebido.
Estava inaugurada uma maneira complicada de lidar com a questão dos direitos civis. Sem a compreensão de que a abolição era resultado de um movimento coletivo, permanecíamos atados ao complicado jogo de relações pessoais, suas contraprestações e deveres: chave do personalismo e do próprio clientelismo. Nova versão para uma estrutura antiga, em que as relações privadas se impõem sobre esferas públicas de atuação.
Como se fôssemos avessos a qualquer associação com violência, apenas reproduzimos hierarquias que, de tão assentadas, pareciam legitimadas pela própria natureza. Péssima lição de cidadania: a liberdade combinada com humildade e servidão, distante das noções de livre-arbítrio e de responsabilidade individual.

Lilia Moritz Schwacz

GUERRA DAS VERSÕES

Desde a metade do século XIX a monarquia mostrou-se disposta a aprovar projetos abolicionistas. Em meio ao aumento da violência em conflitos entre escravos e senhores, as leis do Ventre Livre (1871) e dos Sexagenários (1885) buscavam manter a grande produção agrícola e preservar a ordem social.
Este processo fez crescer a oposição dos proprietàrios escravocratas, que engrossavam a fileiras republicanas. Ao afastar-se deles, a monarquia se preparava para construir uma nova base de legitimidade, sintonizada com grupos emergentes (como os setores médios urbanos) e com as expectativas gerais da população. Para isso, investiu pesado na propaganda que associava a abolição a uma ação exclusiva da princesa Isabel. Uma espécie de febre monarquista, de natureza cultural e religiosa, foi difundida naquele momento. Valendo-se de concepções de realeza herdadas da África, foi natural para os negros adotar essa idéia de abolição como uma redenção concedida pela monarquia. Ela se espalhou pelos espaços da cultura popular, fortalecida em seu caráter místico e africanizado.
Após a queda da monarquia, a República tentou ligar-se à memória da abolição. Seu principal argumento era a recusa do Exército em capturar os escravos fugidos. Reinvindicava-se, assim, o reconhecimento dos republicanos militares como atores da abolição e redentores da pátria livre. Nos manuais escolares, o ensino da história da abolição exaltava como heróis republicanos Silva Jardim e Deodoro da Fonseca. Nas comemorações oficiais da abolição, o 13 de maio e o 15 de novembro eram apresentados como datas complementares de um mesmo processo de modernização do país, marcos de uma nova era que proporcionou o exercício pleno da cidadania, abrindo as portas do Brasil ao progresso e à civilização. De modo complementar, ligavam o sistema monárquico à escravidão e ao atraso do país, além de silenciar o nome da princesa Isabel no processo de aprovação do projeto convertido em lei.
Mas a estratégia não conquistou os libertos e afro-descendentes. Houve derramamento de sangue e tentativas de resistência após a proclamação da República. O novo regime foi assombrado por fuzilamentos em massa, espancamentos de negros fiéis à sua “Redentora”, prisão e deportação de líderes da Guarda Negra (espécie de milícia organizada para defender a monarquia e a princesa Isabel) e conflitos com ex-escravos que se recusavam a trabalhar para fazendeiros republicanos. Muitos negros, convencidos de que deviam sua liberdade ao trono, tornavam-se mártires pela monarquia. Conseqüentemente, foram esquecidos pela República.

Robert Daibert Júnior

A COR DA CULTURA

Em 1902, o afro-descendente Rodrigues Alves assumia a Presidência da República. No entanto, foi exatamente na gestão desse afro-descendente que o Brasil começou a por em prática, a partir de sua capital, um programa cultural visando europeizar-se de vez. Desde a abolição, a elite se empenhava em construir a nação que sempre pretendeu. Nela, a cultura africana e mesmo a presença negra eram indesejadas. Afinal, não era animador pensar no futuro de um país de “selvagens inferiores” e “negros boçais e degenerados”, nas palavras de um literato como José Veríssimo (1857-1916).
Apesar disso, os descendentes dos antigos escravos buscaram a auto-afirmação e a inclusão social por meio de suas práticas culturais. O tempo que transcorreu da abolição até o recenseamento da população, em 1920, foi, para artistas e intelectuais afro-descendentes, um período de intensa atividade. Escrevendo e atuando em dezenas de montagens teatrais em circos cariocas e pelo Brasil, Benjamin de Oliveira, o “palhaço negro”, cria o teatro popular brasileiro, tão importante quanto a televisão em nossos dias. Da mesma forma, o período marca o apogeu de Eduardo das Neves, adversário porém amigo de Benjamin; da compositora Chiquinha Gonzaga; do compositor e regente Paulino Sacramento; do jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume, pioneiro da crítica carnavalesca; de Zeca Patrocínio, pioneiro do cinema brasileiro; de Hemetério dos Santos, autor da primeira gramática da língua portuguesa, bem como o surgimento de Pixinguinha e Grande Otelo, para ficar só nesses exemplos.
Nessa época, se fortalecem e se difundem no eixo Salvador-Rio de Janeiro, por intermédio da Ialorixá Mãe Aninha, as bases do culto aos Orixás Jeje-Nagôs, o mais forte traço da africanidade brasileira. Enquanto isso, os batuques bantos recriados no meio rural completam o amálgama do qual nasceu o samba.
Era a cultura brasileira se plasmando pelas mãos da “gente de cor”. Logo depois, todo esse universo de ações e intenções seria apropriado, e mais tarde sufocado, pela indústria cultural globalizada.
Na cena cultural brasileira de hoje, pretos e mulatos somos, quando muito, coadjuvantes, contando-se nos dedos aqueles de nós que chegam ao protagonismo. E dos que chegam, boa parte tem que abrir mão de sua essência e de sua afro-descendência, tolhida por modernas formas de escravidão, cativa da mídia e do mercado – que ainda nos querem do jeito que a sociedade brasileira nos queria cem anos atrás.

Nei Lopes

ABOLIÇÃO QUE NÃO VEIO

A escravidão foi abolida oficialmente na Mauritânia em 9 de novembro de 1981 pelo decreto nº 81.234. Quase três décadas depois, as relações sociais no país indicam que naquele país africano a “lei áurea” simplesmente não pegou.
A população é composta de dois grupos étnico-raciais e culturais: os negros-africanos e os árabo-berberes. Os negros-africanos foram os primeiros a ocupar a região, por volta do século III a.C. Este grupo era resultado de interpenetrações de sociedades diversas. A partir do terceiro século da era cristã, os povos negros começaram a manter intensas relações com os berberes recém-chegados da região do Magrebe., também eram oriundos da mistura de vários povos. Por isso, não faz sentido pregar pureza étnica, cultural ou racial de qualquer daqueles grupos. No entanto, esta crença existe.
No mundo rural, a escravidão predomina na vida doméstica, de maneira aberta e moralmente aceita. Já no ambiente urbano, os árabo-berberes fazem uso de mecanismos sutis: seus cativos negro-africanos trabalham como vendedores de água, descarregadores nos portos, e nas tarefas domésticas. O dono não gasta quase nada para alimentar seu escravo. E este tem a função de frutificar ao máximo o investimento do dono.
As sociedades negro-africanas de castas justificam seus mecanismos com base em uma ordem divina ou biológica. A ruptura deste sistema é quase impossível, já que há uma submissão quase cega. A luta pela mudança de mentalidade fica mais complicada quando não há vontade política. Durante o período colonial, a França nunca lutou contra as práticas escravocratas até 1960. Para não perder o apoio da classe dirigente e manter o controle sobre a população, as autoridades coloniais faziam vista grossa quanto à escravidão.
A persistência dessas práticas tem como finalidade um rígido controle político sobre as sociedades negro-africanas. Além disso, ter escravos implica maior prestígio social, uma vez que os árabo-berberes sempre viram a necessidade de trabalhar como algo indigno de pessoas bem-nascidas. Postura que, aliás, era encontrada também no contexto da escravidão brasileira.
Desde o início da década de 1980, grupos negro-africanos e árabo-berberes da Mauritânia vêm denunciando tratamentos discriminatórios nos planos profissional, habitacional, de acesso a terras e nas políticas. Qual não foi minha surpresa ao colocar no Google as palavras “esclavage en Mauritanie”. Há muitos artigos e relatórios de órgãos internacionais e ONGS mauritanas – como a SOS-Esclaves e Mouvement El Hor – em prol da erradicação total das práticas escravocratas.

Alain Pascal Kaly

CRONOLOGIA

1772
O julgamento do escravo fugitivo Somersett abre precedente para que a justça britânica não mais apoie a escravidão.
1794
Primeiro país a proibir a escravidão, o Haiti tem sua legislação abolicionista revogada por Napoleão em 1802.
1807
O Parlamento britânico aprova o “Abolition Act”, que proibia o tráfico de escravos na Inglaterra.
1810
Tratado de Aliança e Amizade entre Portugal e Inglaterra. Estabelece a abolição gradual da escravidão e delimita as possessões portuguesas na África como as únicas que poderiam continuar o tráfico.
1823
José Bonifácio, na Assembléia Constituinte, apresenta uma representação sobre a abolição da escravatura e a emancipação gradual dos escravos.
É aprovada a lei que proíbe a escravidão no Chile.
1826
A Inglaterra impõe ao governo brasileiro o compromisso de decretar a abolição do tráfico em três anos.
1829
Durante o governo de Vicente Guerrero, é decretada a abolição da escravatura no México.
1831
Lei Feijó proibe o tráfico e considera livres todos os africanos introduzidos no Brasil a partir desta data. A lei foi ignorada e chamada popularmente de “lei para inglês ver”.
1833
É sancionada no Parlamento a extinção da escravatura, que é estendida a todo o Império britânico.
1845
“Slave Trade Suppression Act (Bill Aberdeen)”. Lei britânica que proibia o comércio de escravos entre a África e a América.
1848
Em1794, a convenção republicana francesa votou pela abolição nas suas colônias, mas somente em 1848 os escravos são emancipados.
1850
Lei Eusébio de Queiróz. Proíbe o comércio de escravos para o Brasil.
1854
Lei Nabuco de Araújo. Previa sanções para autoridades que encobrissem o contrabando de escravos.
É decretado o fim da escravidão na Venezuela e no Peru.
1865
Com o fim da guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), o presidente Lincoln declara extinta a escravidão em todo o território norte-americano.
1869
Portugal torna ilegal a escravidão, mas já havia decretado liberdade dos escravos em territórios desde 1854.
1871
Lei do Ventre Livre. Concede liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir dessa data, mas os mantém sob a tutela dos seus senhores até atingirem os 21 anos.
1874
Os escravos são emancipados na Costa do Ouro (atual Gana) após a conquista do reino de Axante pelos ingleses.
1880
Joaquim Nabuco (deputado de Pernambuco) apresenta à Câmara um projeto de lei propondo a aboliçao da escravidão com indenização até 1890.
Fundação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão e de seu jornal, “O Abolicionista”.
1883
Publicação de “O Abolicionismo”, de Joaquim Nabuco.
Criação da Confederação Abolicionista / panfleto de André Rebouças, “Abolição imediata e sem indenização”.
1884
Extinção da escravidão no Ceará.
1885
Lei dos Sexagenários (Saraiva-Cotegipe), que concede liberdade aos escravos com mais de 60 anos.
1886
O tráfico foi oficialmente extinto em Cuba, que passou a receber mão-de-obra chinesa para trabalhar no plantio de cana-de-açúcar.
1887
Quilombo de Jabaquara.
Fundado por José do Patrocínio o jornal abolicionista “Cidade do Rio”.
1888
Lei Áurea.
Extinguiu definitivamente a escravidão no Brasil.
1889
Proclamação da República.
1890
Acordo com a Inglaterra para proibição do tráfico negreiro e abolição da escravatura na Tunísia.
1894
A Inglaterra decreta em Gâmbia e emancipação gradual da escravidão. Os escravos tornavam-se libertos com a morte do senhor ou mediante pagamento.
1897
A escravidão é abolida em Madagascar. Em Zanzibar, o status legal da escravidão é abolido, mas a proibição da prática só ocorre em 1909.
1901
A Inglaterra torna a escravidão ilegal no sul da Nigéria, mas a abolição no norte do país só ocorre em 1936.
1906
A escravidão é proibida na China.
1928
As leis que aboliam a escravidão nas colônias britânicas não eram aplicáveis ao protetorado de Serra Leoa, onde a escravidão só foi considerada ilegal a partir desta data.
1942
A Etiópia manteve a escravidão até esta data, indiferente às pressões abolicionistas internacionais. Só se tornou independente na década de 1930.
1956
Com a retomada de sua soberania, a escravidão no Marrocos foi desaparecendo do reino sem uma legislção específica, e a instituição se extinguiu.
1962
A Arábia Saudita abole o status legal da escravidão.
1980
Na Mauritânia, a lei de 1980 foi a última das quatro tentativas legais de abolir a escravidão no país. Atualmente, ainda há indícios desta instituição no país.
1990
A abolição foi abolida no Sudão na década de 1950, mas a prática foi retomada nos anos 90 com a guerra civil.

Fonte: Especial Abolição 120 anos – Revista de História da Biblioteca Nacional – maio 2008



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