18.9.08

QUE NEGRO É ESSE NA CULTURA NEGRA?




Stuart Hall

Começo com uma pergunta: que tipo de momento é este para se colocar a questão da cultura popular negra? ("Popular culture" teve uma tradução literal, aqui: "cultura popular". A cultura popular, para Hall, é constituída por tradições e práticas culturais populares e pela forma como estas se processam em tensão permanente com a cultura hegemônica. Nesse sentido, ela não se resume à tradição e ao folclore, nem ao que mais se consome ou vende; não se define por seu conteúdo, nem por qualquer espécie de "programa político popular" preexistente. Sua importância reside em ser um terreno de luta pelo poder, de consentimento e resistência populares, abarcando, assim, elementos da cultura de massa, da cultura tradicional e das práticas contemporâneas de produção e consumo culturais.) Esses momentos são sempre conjunturais. Eles têm sua especificidade histórica; e embora sempre exibam semelhanças e continuidades com outros momentos, eles são o mesmo momento. E a combinação do que é semelhante com o que é diferente define não somente a especificidade do momento, mas também a especificidade da questão e, portanto, as estratégias das políticas culturais com as quais tentamos intervir na cultura popular, bem como a forma e o estilo da teoria e crítica cultural que precisam acompanhar essa combinação. Em seu importante ensaio "The New Cultural Politics of Diference", Cornel West propõe uma genealogia do que é este momento, uma genealogia do presente que considero brilhantemente sucinta e esclarecedora. Sua genealogia acompanha, até certo ponto, posições que tentei esboçar em um artigo de relativa notoriedade e, além disso, insere de maneira útil esse momento no contexto americano, relacionando-o também às tradições filosóficas cognitivas e intelectuais com as quais ele dialoga.
Segundo West, o momento, este momento, possui três grandes eixos. O primeiro é o deslocamento dos modelos europeus de alta cultura, da Europa enquanto sujeito universal da cultura, e da própria cultura, em sua antiga leitura arnoldiana, como o último refúgio de... quase disse, de velhacos, mas não vou dizer de quem. Pelo menos sabemos a quem essa leitura resistia - a cultura contra os bárbaros, contra a ralé que tentava forçar os portões, enquanto a prosa eterna da anarquia fluía da pena de Arnold. O segundo eixo é o surgmento dos EUA como potência mundial e, consequentemente, como centro de produção e circulação global de cultura. Esse surgimento é simultaneamente um deslocamento e uma mudança hegemônica na definição de cultura - um movimento que vai da alta cultura à cultura popular americana majoritária e suas formas de cultura de massa, mediadas pela imagem e formas tecnológicas. O terceiro eixo é a descolonização do Terceiro Mundo, marcado culturalmente pela emergência das sensibilidades descolonizadas. Eu entendo a descolonização do Terceiro Mundo no sentido de Frantz Fanon: incluo aí o impacto dos direitos civis e as lutas negras pela descolonização das mentes dos povos da diaáspora negra.
Gostaria de acrescentar algumas qualificações a esse quadro geral, detalhes que, a meu ver, tornam o momento presente um momento peculiar para se propor a questão da cultura popular negra. Primeiro, quero lembrar as ambigüidades daquele deslocamento da Europa para a América, uma vez que ele inclui a relação ambivalente dos EUA com a alta cultura européia e a ambigüidade da relação dos EUA com suas próprias hierarquias étnicas internas, Até há pouco, a Europa Ocidental não tinha qualquer tipo de etnicidade. Ou não reconhecia que tivesse. Os EUA sempre tiveram uma série de etnicidades e, conseqüentemente, a construção de hierarquias étnicas sempre definiu suas políticas culturais. E, evidentemente, dentro desse deslocamento, silenciado e sem reconhecimento, estava a própria cultura popular americana, que desde sempre conteve, silenciadas ou não, as tradições vernáculas da cultura popular negra americana. Talvez seja difícil lembrar que, quando vista de fora dos EUA, a cultura de massa americana sempre envolveu certas tradições que só podem ser atribuídas às tradições da cultura popular negra vernácula.
A segunda qualificação diz respeito à natureza do período de globalização cultural atualmente em processo. Não gosto do termo "pós-moderno global", um significante tão vazio e deslizante que pode ser entendido como qualquer coisa. Os negros estão colocados numa relação tão ambígua com o pós-modernismo quanto estavam com o alto modernismo: mesmo quando despojado de sua procedência no marxismo desencantado ou na intelectualidade francesa e reduzido a um status mais modesto e decritivo, o pós-modernismo continua a desenvolver-se de forma extremamente desigual, como um fenômeno em que os antigos centro-periferias da alta modernidade reaparecem consistentemente. Os únicos lugares que podem experimentar genuinamente a culinária étnica pós-moderna são Manhattan e Londres, não Calcutá, e mesmo assim é impossível rejeitar inteiramente o "pós-moderno global", na medida em que ele registra certas mudanças estilísticas no que eu chamava de dominante cultural. Mesmo que o pós-modernismo não seja uma nova era cultural, mas somente o modernismo nas ruas, isso, em si, representa uma importante mudança no terreno da cultura rumo ao popular - rumo a práticas populares, práticas cotidianas, narrativas locais, descentramento de antigas hierarquias e de grandes narrativas. Esse descentramento ou deslocamento abre caminho para novos espaços de contestação, e causa uma importantíssima mudança na alta cultura das relações culturais populares, apresentando-se, dessa forma, como uma importante oportunidade estratégica para a intervenção no campo da cultura popular.
Em terceiro lugar, devemos ter em mente a profunda e ambivalente fascinação do pós-modernismo pelas diferenças sexuais, raciais, culturais e, sobretudo, étnicas. Em total oposição à cegueira e hostilidade que a alta cultura européia demonstrava, de modo geral, pela diferença étnica - sua incapacidade até de falar em etnicidade quando esta inscrevia seus efeitos de forma tão evidente -, não há nada que o pós-modernismo global mais adore do que um certo tipo de diferença: um toque de etnicidade, um "sabor" do exótico e, como dizemos em inglês, a bit of the other (expressão que no Reino Unido possui não só uma conotação étnica, como também sexual). Em seu ensaio "Modernismo, pós-modernismo e o problema do visual na cultura afro-americana", Michele Wallace acertou ao indagar se esse reaparecimento de uma proliferação da diferença, de um certo tipo de ascensão do pós-moderno global, não seria uma repetição daquele jogo de "esconde-esconde" - que o modernismo jogou com o primitivismo no passado - e ao indagar se esse jogo não estaria sendo novamente realizado às custas do vasto silenciamento acerca da fascinação ocidental pelos corpos de homens e mulheres negros e de outras etnias. Devemos indagar sobre esse silêncio contínuo no terreno movediço do pós-modernismo e questionar se as formas de autorização do olhar a que esta proliferação de diferença convida e permite, ao mesmo tempo em que rejeita, não seriam, realmente, junto com a Benetton e a miscelânia de modelos masculinos da revista The Face, um tipo de diferença que não faz diferença alguma.
Hal Foster escreve: "O primitivo é um problema moderno, uma crise na identidade cultural", daí a construção modernista do primitivismo, o reconhecimento fetichista e a rejeição da diferença do primitivo. Mas essa resolução é somente uma repressão; o primitivo, detido no interior de nosso inconsciente político, retorna como um estranho familiar, no momento de seu aparente eclipse político. Essa ruptura do primitivismo, administrada pelo modernismo, torna-se um outro evento pós-moderno. Essa administração é certamente evidente na diferença que pode não produzir diferença alguma e que marca o surgimento ambíguo da etnicidade no âmago do pós-moderno global. Mas não pode ser só isso, pois não podemos esquecer como a vida cultural sobretudo no Ocidente e também em outras partes, tem sido transformada em nossa época pelas vozes das margens.
Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora, e isso não é simplesmente uma abertura, dentro dos espaços dominantes, à ocupação dos de fora. É também o resultado de políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político e cultural. Isso vale não somente para a raça, mas também para outras etnicidades marginalizadas, assim como o feminismo e as políticas sexuais no movimento de gays e lésbicas, como resultado de um novo tipo de política cultural. Não quero sugerir, é óbvio, que podemos contrapor à eterna história de nossa própria marginalização uma sensação confortável de vitórias alcançadas - estou cansado dessas duas contranarrativas . Permanecer dentro delas é cair na armadilha da eterna divisão ou/ou, ou vitória total ou total cooptação, o que quase nunca acontece na política cultural, mas com o que os críticos culturais se reconfortam.
Estamos falando de uma luta pela hegemonia cultural que hoje é travada tanto na cultura popular quanto em outro lugar. a distinção entre erudito e popular é precisamente o que o pós-moderno global está deslocando. A hegemonia cultural nunca é uma questão de vitória ou dominação pura (não é isso que o termo significa); nunca é um jogo cultural de perde-ganha; sempre tem a ver com a mudança no equilíbrio de poder nas relações da cultura; trata-se sempre de mudar as disposições e configurações do poder cultural e não se retirar dele. Existe uma atitude do tipo "nada muda, o sistema sempre vence", que eu leio como a um invólucro protetor cínico, que, lamento dizer, críticos culturais norte-americanos frequentemente utilizam. Um invólucro que, algumas vezes, os impede de desenvolver estratégias culturais que façam diferença. É como se, para se protegerem de uma derrota eventual, precisassem fingir que tudo lhes é transparente e igual ao que sempre foi.
Já as estratégias culturais capazes de fazer diferença são o que me interessa - aquelas capazes de efetuar diferenças e de deslocar as disposições do poder. Reconheço que os espaços "conquistados " para a diferença são poucos e dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados. Acredito que sejam limitados. Sei que eles são absurdamente subfinanciados , que existe sempre um preço de cooptação a ser pago quando o lado cortante da diferença e da transgressão perde o fio na espetacularização. Eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada. Mas simplesmente menosprezá-la, chamando-a de "o mesmo", não adianta. Depreciá-la desse modo reflete meramente o modelo específico das políticas culturais ao qual continuamos atados, precisamente o jogo da inversão - nosso modelo substituindo o modelo deles, nossas identidades em lugar das suas - a que Antonio Gramsci chamava de cultura como "guerra de manobra" de uma vez por todas, quando, de fato, o único jogo corrente que vale a pena jogar é o das "guerras de posição" culturais.
Para que não pensem, parafraseando Gramsci, que meu otimismo da vontade agora já superou completamente o meu pessimismo do intelecto, deixem-me acrescentar um quarto elemento que comente o atual momento. Se o pós-moderno global representa uma abertura ambígua para a diferença e para as margens e faz com que um certo tipo de descentramento da narrativa ocidental se torne provável, ele é acompanhado por uma reação que vem do âmago das políticas culturais: a resistência agressiva à diferença; a tentativa de restaurar o cânone da civilização ocidental; o ataque direto e indireto ao multiculturalismo; o retorno às grandes narrativas da história, da língua e da literatura (os três grandes pilares de sustentação da identidade e da cultura nacionais); a defesa do absolutismo étnico, de um racismo cultural que marcou as eras Thatcher e Reagan; e as novas xenofobias que estão prestes a subjugar a Europa. A última coisa a fazer é ler-me como se eu estivesse dizendo que a dialética cultural acabou. Parte do problema é que temos esquecido que tipo de espaço é o da cultura popular. E a cultura popular negra não está isenta dessa dialética, que é histórica e não uma questão de má-fé. Portanto, é necessário desconstruir o popular de uma vez por todas. Não há como retornar a uma visão ingênua do que ele consiste.
A cultura popular carrega essa ressonância afirmativa por causa do peso da palavra "popular". E, em certo sentido, a cultura popular tem sempre sua base em experiências, prazeres, memórias e tradições do povo. Ela tem ligações com as esperanças e aspirações locais, tragédias e cenários locais que são práticas e experiências cotidianas de pessoas comuns. Daí, ela se liga àquilo que Bakhtin chama de "vulgar" - o popular, o informal, o lado inferior, o grotesco - eis porque sempre foi contraposta à alta cultura ou cultura de elite e é, portanto, um local de tradições alternativas, sendo esse o motivo pelo qual a tradição dominante sempre suspeitou profundamente a seu respeito, e com razão. Desconfia-se de que essa tradição pode ser superada pelo que Bakhtin chama de "carnavalesco". Este mapeamento fundamental da cultura entre o alto e o baixo foi dividido em quatro domínios simbólicos por Peter Sallybrass e Allon White em seu importante livro The Politics and Poetics of Transgression [A política e a poética da transgressão]. Eles falam sobre o mapeamento do alto e baixo em formas psíquicas, no corpo humano, no espaço e na ordem social e discutem a distinção alto/baixo enquanto base fundamental para o mecanismo de ordenamento e de produção de sentido na cultura européia e em outras, apesar do fato de o conteúdo alto e baixo sofrer mudanças de um momento histórico a outro.
A questão importante é o ordenamento das diferentes morais estéticas, das estéticas sociais, os ordenamentos culturais que abrem a cultura para o jogo do poder, e não um inventário do que é alto versus o que é baixo em um momento específico. É por isso que Gramsci deu à questão que chamou de "nacional-popular" tamanha importância estratégica, pois entendeu que é no terreno do senso comum que a hegemonia cultural é produzida, perdida e se torna objeto de lutas. O papel do "popular" na cultura popular é o de fixar a autenticidade das formas populares, enraizando-as nas experiências das comunidades populares das quais elas retiram o seu vigor e nos permitindo vê-las como expressão de uma vida social subalterna específica, que resiste a ser constantemente reformulada enquanto baixa e periférica. Entretanto, como a cultura popular tem se tornado historicamente a forma dominante da cultura global, ela é, então, simultaneamente, a cena, por excelência, da mercantilização, das indústrias onde a cultura penetra diretamente nos circuitos de uma tecnologia dominante - os circuitos do poder e do capital. Ela é o espaço de homogeneização em que os estereótipos e as fórmulas processam sem compaixão o material e as experiências que ela traz dentro da sua rede, espaço em que o controle sobre narrativas e representações passa para as mãos das burocracias culturais estabelecidas às vezes até sem resistência. Ela está enraizada na experiência popular e, ao mesmo tempo, disponível para expropriação. Quero defender a idéia de que isso é necessário e inevitável e vale também para a cultura popular negra, que, como todas as culturas populares do mundo moderno, está destinada a ser contraditória, o que ocorre não porque não tenhamos travado a batalha cultural suficientemente bem.
Por definição, a cultura popular negra é um espaço contraditório. É um local de contestação estratégica. Mas ela nunca pode ser simplificada ou explicada nos termos das simples oposições binárias habitualmente usadas para mapeá-la: alto ou baixo, resistência versus cooptação, autêntico versus inautêntico, experiencial versus formal, oposição versus homogeneização. Sempre existem posições a serem conquistadas na cultura popular, mas nenhuma luta consegue capturar a própria cultura popular para o nosso lado ou o deles. Por que isso acontece? Que conseqüência isso traz para as estratégias de intervenção nas políticas culturais? Como isso muda as bases de uma crítica cultural negra?
Não importa o quão deformadas, cooptadas e inautênticas sejam as formas como os negros e as tradições e comunidades negras pareçam ou sejam representadas na cultura popular, nós continuamos a ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as experiências que estão por trás delas. Em sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade e na sua rica, profunda e variada atenção à fala; em suas inflexões vernaculares e locais; em sua rica produção de contranarrativas; e, sobretudo em seu uso metafórico do vocabulário musical, a cultura popular negra tem permitido trazer à tona, até nas modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream, elementos de um discurso que é diferente - outras formas de vida, outras tradições de representação.
Não pretendo repetir o trabalho daqueles que consagraram suas vidas de estudo, crítica e criação à identificação das particularidades dessas tradições diaspóricas, à pesquisa de suas modalidades, as experiências históricas e as memórias que codificam. Vou fazer três comentários incompletos que não darão conta dessas tradições, já que elas são pertinentes ao argumento que quero desenvolver. Primeiro, peço que observem como, dentro do repertório negro, o estilo - que os críticos culturais da corrente dominante muitas vezes acreditam ser uma simples casca, uma embalagem, o revestimento de açúcar na pílula - se tornou em si matéria do acontecimento. Segundo, percebam como, deslocado de um mundo logocêntrico - onde o domínio direto das modalidades culturais significou o domínio da escrita e, daí, a crítica da escrita (crítica logocêntrica) e a desconstrução da escrita - , o povo da diáspora negra tem, em oposição a tudo isso, encontrado a forma profunda, a estrutura profunda de sua vida cultural na música. Terceiro, pensem em como essas culturas têm usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o único capital cultural que tínhamos. Temos trabalhado em nós mesmos como em telas de representação.
Existem aqui questões profundas de transmissão e herança cultural, de relações complexas entre as origens africanas e as dispersões irreverssíveis da diáspora; questões que não vou aprofundar aqui. Mas acredito que esses repertórios da cultura popular negra - uma vez que fomos excluídos da corrente cultural dominante - eram frequentemente os únicos espaços performáticos que nos restavam e que foram sobredeterminados de duas formas: parcialmente por suas heranças, e também determinados criticamente pelas condições diaspóricas nas quais as conexões foram forjadas. A apropriação, cooptação e rearticulação seletivas de ideologias, culturas e instituições européias, junto a um patrimõnio africano - cito novamente Cornel West -, conduziram a inovações lingüísticas na estilização retórica do corpo, a formas de ocupar um espaço social alheio, a expressões potencializadas, a estilos de cabelo, a posturas, gingados e maneiras de falar, bem como a meios de constituir e sustentar o companheirismo e a comunidade.
A questão subjacente de sobredeterminação - repertórios culturais negros constituídos simultaneamente a partir de duas direções - é talvez mais subversivo do que se pensa. Significa insistir na cultura popular negra, estritamente falando, em termos etnográficos, não existem formas puras. Todas essas formas são sempre o produto de sincronizações parciais, de enganjamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias subterrâneas de recodificação e transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir de materiais preexistentes. Essas formas são sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula. Assim, elas devem ser sempre ouvidas não simplesmente como recuperação de um diálogo perdido que carrega indicações para a produção de novas músicas (porque não volta para o antigo de um modo simples), mas como o que elas são - adaptações conformadas aos espaços mistos, contraditórios e híbridos da cultura popular. Elas não são a recuperação de algo puro pelo qual, finalmente, podemos nos orientar. Somos obrigados a reconhecer que elas são o que o moderno é, naquilo que Kobena Mercer chama a necessidade de uma estética diaspórica.
Essa marca da diferença dentro das formas da cultura popular - que são, por definição, contraditórias e, portanto, aparecem como impuras e ameaçadas pela cooptação ou exclusão - é carregada pelo significante "negro" na expressão "cultura popular negra". Ela chegou a significar a comunidade negra onde se guardam as tradições e cujas lutas sobrevivem na persistência da experiência negra ( a experiência histórica do povo negro na diáspora), da estética negra (os repertórios culturais próprios a partir dos quais foram produzidos as representações populares) e das contranarrativas negras que lutamos para expressar. Aqui a cultura popular negra retorna ao terreno que defini anteriormente. A "boa" cultura popular passa no teste de autenticidade, que é a referência à experiência negra e à expressividade negra. Estas servem como garantias na determinação de qual cultura popular negra é a certa, qual é nossa e qual não é.
Tenho a impressão de que, historicamente, nada poderia ter sido feito para intervir no campo dominado da cultura popular mainstream, para tentar conquistar algum espaço lá, sem o uso de estratégias através das quais aquelas dimensões fossem condensadas no significante "negro". Onde estaríamos, conforme bell hooks comentou certa vez, sem um toque de essencialismo ou sem o que Gayatri Spivak chama de essencialismo estratégico, um momento necessário ? A questão é se ainda estamos nesse momento, se esse constitui ainda uma base suficiente para as estratégias das novas intervenções. Vou tentar esquematizar o que me parecem ser as fraquezas desse momento essencializante e as estratégias criativas e críticas que dele decorrem.
Esse momento essencializa as diferenças em vários sentidos. Ele enxerga a diferença como "as tradições deles versus as nossas" - não de uma forma posicional, mas mutuamente excludente, autônoma e auto-suficiente - e é, consequentemente, incapaz de compreender as estratégias dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica. Um movimento para além desse essencialismo não se constitui em estratégia crítica ou estética sem uma política cultural, sem uma marcação da diferença. Não é simplesmente a rearticulação e a reapropriação como um fim em si mesmo. O que esse movimento burla é a essencialização da diferença dentro das duas oposições mútuas ou/ou. O que ele faz é deslocar-nos para um novo tipo de posição cultural, uma lógica diferente da diferença, para resumir o que Paul Gilroy tão vividamente pautou na agenda política e cultural da política negra do Reino Unido: os negros da diáspora britânica devem, neste momento histórico, recusar o binário negro ou britânico. Eles devem recusar porque o "ou" permanece o local de contestação constante, quando o propósito da luta deve ser, ao contrário, substituir o "ou" pela potencialidade e pela possibilidade de um "e", o que significa a lógica do acoplamento, em lugar da lógica da oposição binária. Você pode ser negro e britânico, negra e britânica não somente porque esta é uma posição necessária nos anos 90, mas porque mesmo esses dois termos, unidos agora pela conjunção "e", contrariamente à oposição de um ao outro, não esgotam todas as nossas identidades. Somente algumas delas estão, às vezes, envolvidas nessa luta específica.
O momento essencializante é fraco porque naturaliza e des-historiciza a diferença, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural, biológico e genético. No momento em que o significante "negro" é arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial biologicamente constituída, valorizamos, pela inversão a própria base do racismo que estamos tentando desconstruir. Além disso, como sempre acontece quando naturalizamos categorias históricas (pensem em gênero e sexualidade), fixamos esse significante fora da história, da mudança e da intervenção políticas. E uma vez que ele é fixado, somos tentados a usar "negro" como algo suficiente em si mesmo, para garantir o caráter progressista da política pela qual lutamos sob essa bandeira - como se não tivéssemos nenhuma outra política para discutir, exceto a de que algo é negro ou não é. Somos tentados, ainda, a exibir esse significante como um dispositivo que pode purificar o impuro e enquadrar irmãos e irmãs desgarrados, que estão desviando-se do que deveriam estar fazendo, e policiar as fronteiras - que, claro, são fronteiras políticas, simbólicas e posicionais - como se elas fossem genéticas. É como se pudéssemos traduzir a natureza em política, usando uma categoria racial para sancionar as políticas de um texto cultural e como medida de desvio
Além do mais, tendemos a privilegiar a experiência enquanto tal como se a vida negra fosse uma experiência vivida fora da representação. Só precisamos, parece, expressar o que já sabemos que somos. Em vez disso, é somente pelo modo no qual representamos e imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber como nos constituímos e quem somos. Não há como escapar de políticas de representação, e não podemos lidar com a idéia de "como a vida é realmente lá fora" como uma espécie de teste para medir o acerto ou erro político de uma dada estratégia ou texto cultural. E não será surpresa para vocês que eu considere que "negro" não é, na realidade, nenhuma dessas coisas. Não é uma categoria de essência. Portanto, essa maneira de compreender o significante flutuante na cultura popular negra é hoje, conseqüentemente, insatisfatória.
Existe, é claro, um conjunto de experiências negras historicamente distintas que contribuem para os repertórios alternativos que mencionei anteriormente. Mas é para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência negra que devemos dirigir integralmente a nossa atenção criativa agora. Não é somente para apreciar as diferenças históricas e experienciais dentro de, e entre, comunidades, regiões, campo e cidade, nas culturas nacionais e entre as diásporas, mas também reconhecer outros tipos de diferença que localizam, situam e posicionam o povo negro. A questão não é simplesmente que, visto que nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferenças - de gênero, sexualidade, classe. Trata-se também do fato de que esses antagonismos se recusam a ser alinhados; simplesmente não se reduzem um ao outro, se recusam a se aglutinar em torno de um eixo único de diferenciação. Estamos constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes. Cada uma delas tem para nós o seu ponto de profunda identificação subjetiva. Essa é a questão mais difícil da proliferação no campo das identidades e antagonismos: elas freqüentemente se deslocam entre si.
Assim, colocado de maneira direta, certas formas pelas quais os homens negros continuam a viver suas contra-identidades enquanto masculinidades negras e representam fantasias de masculinidades negras nos teatros da cultura popular são, quando vistas a partir de outros eixos de diferença, as mesmas identidades masculinas que são opressivas para as mulheres e que reivindicam visibilidade para a sua dureza às custas da vulnerabilidade das mulheres negras e da feminização dos homosexuais negros. O modo como políticas transgressoras são, em um domínio, constantemente suturadas e estabilizadas pelas políticas reacionárias ou não examinadas em outro domínio só pode ser explicado por este contínuo deslocamento-cruzado de uma identidade por outra, de uma estrutura por outra. Etinicidades dominantes são sempre sustentadas por uma economia sexual específica, uma figuração específica de masculinidade, uma identidade específica de classe. Não existe garantia, quando procuramos uma identidade racial essencializada da qual pensamos estar seguros, de que esta sempre será mutuamente libertadora e progressista em todas as outras dimensões. Entretanto, existe sim uma política pela qual vale lutar. Mas a invocação de uma experiência negra garantida por trás dela não produzirá essa política. De fato não é nada surpreendente a pluralidade de antagonismos e diferenças que hoje procuram destruir a unidade política negra, dadas as complexidades das estruturas de subordinação que moldaram a forma como nós fomos inseridos na diáspora negra.
Estes são os pensamentos que me impulsionaram a falar, em um momento de espontaneidade, do fim da inocência do sujeito negro ou do fim da noção ingênua de um sujeito negro essencial. Quero simplesmente concluir lembrando a vocês que esse fim é também um começo. Como Isaac Julien disse, em uma entrevista com bell hooks, sobre o seu novo filme Young Soul Rebels, a respeito da tentativa, em seu próprio trabalho, de retratar uma série de corpos raciais diferentes, para constituir uma gama de diferentes subjetividades negras e de se engajar com as posições de uma série de diferentes tipos de masculinidades negras:
A negritude enquanto signo nunca é suficiente. O que aquele negro faz, como ele age, como pensa politicamente... o ser negro realmente não me basta: eu quero conhecer as suas políticas culturais.
Quero finalizar com dois pensamentos que nos levam de volta ao sujeito da cultura popular. O primeiro é lembrá-los de que essa cultura popular, mercantilizada e estereotipada como é frequentemente, não constitui, como às vezes pensamos, a arena onde descobrimos quem realmente somos, a mente mítica. É um teatro de desejos populares, um teatro de fantasias populares. É onde descobrimos e brincamos com as identificações de nós mesmos, onde somos imaginados, representados, não somente para o público lá fora, que não entende a mensagem, mas também para nós mesmos pela primeira vez. Como disse Freud, o sexo (e a representação) acontecem pricipalmente na cabeça. Em segundo lugar, embora o terreno do popular pareça ser construído com binarismos simples, ele não é. Eu lembrei a vocês sobre a importância da estruturação do espaço cultural em termos de alto e baixo, e a ameaça do carnavalesco bakhtiniano. Acho que Bakhtin tem sido profundamente mal interpretado. O carnavalesco não é simplesmente a inversão de duas coisas que continuam presas aos seus arcabouços contrários; é também atravessado pelo que Bakhtin chama dialógico.
Encerro com uma descrição do que está envolvido no entendimento da cultura popular, numa forma dialógica em vez de estritamente de oposição, extraído de A política e a poética da transgressão, de Stallybrass e White:
Um padrão recorrente emerge: o "de cima" tenta rejeitar e eliminar o "de baixo" por razões de prestígio e status e acaba descobrindo que não só está, de algum modo, freqüentemente dependente desse baixo-Outro (...) mas também que o de cima inclui simbolicamente o de baixo como constituinte primário erotizado de sua própria vida de fantasia. O resultado é uma fusão móvel e conflitiva de poder, medo e desejo na construção da subjetividade: uma dependência psicológica de precisamente aqueles outros que estão sendo rigorosamente impedidos e excluídos no nível da vida social. É por essa razão que o que é socialmente periférico é amiúde simbolicamente central...

[HALL, S. What is this "Black" in Black Popular Culture? In: WALLACE, Michele (Org.). Black Popular Culture. 2. ed. New York: The New Press, 1998. (1. ed.: Seattle: Bay Press, 1992). Tradução de Sayonara Amaral.]

13.9.08

Especial Abolição 120 anos


CARTA DO EDITOR

Às vezes, o tempo parece ser um caprichoso inventor de disfarces. Eles vão desenhando as épocas em tons suaves e com certa brandura.
Cento e vinte anos depois do evento mais importante da História do Brasil, assinalado pela abolição da escravidão em 1888, é preciso entender sem retoques o que aconteceu. É uma tarefa dolorosa, mas inevitável.
A Revista de História da Biblioteca Nacional preparou um Especial sobre o tema, mobilizando diversos historiadores para nos ajudar a alcançar as origens desse processo que não terminou.
Longe das ilusões que foram se depositando ao longo dos anos, eles revisitam, em painéis acelerados, o drama marcante de uma época que assistiu ao fim de séculos de trabalho compulsório, degradante e cruel, mas economicamente confortável para certas elites. Os artigos interrogam personagens que souberam perceber a dimensão do que se passava, examinam situações estruturais, como a formação educativa, a cultura e as condições de produção, e evocam a disputa pelo imaginário abolicionista, Acima de tudo, os grandes atores desse processo são colocados em primeiro plano.

ABOLIÇÃO EM OITO TEMPOS

O texto é curto e direto: “É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário”. Duas frases que mudariam o nosso futuro. Com o fim do cativeiro, o país entraria em uma nova fase, próspera e igualitária. Festa, júbilo, comoção coletiva nas ruas.
Cento e vinte anos depois, a promessa sugerida naquele pedaço de papel soa envelhecida como o próprio. Em que ponto do caminho as coisas deram errado?
Provavelmente, antes mesmo daquele 13 de maio de 1888. Para voltar no tempo e tentar entender o modo como a Abolição foi concebida e se desdobrou, convidamos oito estudiosos a refletir sobre diferentes aspectos daquele momento histórico.
O resultado revela o “jeitinho brasileiro” de acabar com a escravidão. Do ponto de vista religioso, nos separamos do destino norte-americano. Na esfera política, a autoria do feito foi disputada por republicanos e monarquistas. A princesa Isabel virou santa, a reforma agrária foi engavetada e o papel dos próprios negros, ignorado. Para completar, um vôo até a África de hoje, onde a escravidão persiste.

Luciano Figueiredo

EM NOME DE DEUS

Foi muito diferente o papel exercido pela religião e pelas igrejas nos movimentos abolicionistas dos Estados Unidos e do Brasil.
O mais forte componente dos abolicionismos britânico e americano foi justamente a convicção religiosa. Os quakers foram pioneiros na luta contra a escravidão na Grã-Bretanha. Esse grupo religioso puritano, conhecido como Sociedade dos Amigos, engajou-se na luta desde o final do século XVII. Apesar de não haver condenação da escravidão na Bíblia, eles decidiram que sua prática era incompatível com o princípio da igualdade de todos os homens perante Deus. Aliados a outros religiosos, organizaram-se em sociedades abolicionistas, mobilizaram a opinião pública e pressionaram o Parlamento para aprovar medidas contra a escravidão. Em 1807, esses militantes conseguiram sua primeira grande vitória quando o Parlamento decretou o fim do tráfico de escravos.
A atuação dos quakers estendeu-se aos Estados Unidos, onde a luta foi muito mais dura, pois lá a escravidão estava dentro do país. Mesmo assim, na década de 1830 já fucionavam várias sociedades abolicionistas, todas movidas por valores puritanos e organizadas por quakers, metodistas e batistas. A mais importante foi a American Anti-Slavery Society, criada em 1833.
No Brasil, nem o pensamento abolicionista se baseou na religião, nem a Igreja Católica se empenhou na causa. Pelo contrário, padres e ordens religiosas eram coniventes e cúmplices da escravidão. A Bíblia, argumentava-se, não proibia a escravidão e, afinal, o que importava era a liberdade da alma livre do pecado, e não a liberdade civil. Além disso, padres eram empregados do Estado, cujos interesses tinham dificuldades em contrariar. Nosso abolicionismo baseou-se antes em razões políticas e humanistas.
Esse contraste ajuda a entender por que, nos Estados Unidos, a abolição foi seguida de forte ação em favor dos ex-escravos, sobretudo nos campos da educação, dos direitos políticos e do acesso à propriedade da terra. Entre nós, nada foi feito, nem pelo Estado, nem pela Igreja, nem pelos particulares.

José Murilo de Carvalho

SENSIBILIDADE INGLESA

Quando se trata de avaliar os motivos da pressão inglesa pelo fim do tráfico atlântico de escravos, paira nos bancos escolares do ensino médio o estigma do “Ocidentalismo” - crença que reduz a civilização ocidental a uma massa de parasitas sem alma, decadentes, ambiciosos, desenraizados, descrentes e insensíveis.
Não podem ser levadas a sério teses que vinculam a ação britânica a imaginárias crises econômicas do cativeiro do Caribe na passagem do século XVIII para o seguinte. O tráfico seguia lucrativo e não passava pela cabeça de nenhum líder inglês sério que a demanda americana por bens britânicos pudesse aumentar com o fim da escravidão. Mas tudo isso continua a ser ensinado aos nossos filhos e netos.
O abolicionismo britânico tinha natureza cultural e política. Na vanguarda do movimento estavam ativistas que não abriam mão da crença na unidade do gênero humano, com destaque para os quakers, que rejeitavam o uso da violência com o mesmo empenho com que recusavam qualquer sacramento ou hierarquia eclesiástica.
Tratando-se de convencer por meio da palavra e de petições antiescravistas, ajudava contar com uma sólida tradição parlamentar, desfrutar de liberdade de imprensa e circular pela eficiente rede inglesa de comunicações. Mas o pulo do gato do mais ambicioso projeto de persuasão política surgido no Ocidente antes do advento do marketing moderno foi insistir no sofrimento do africano como metáfora do arbítrio vivido pelo inglês comum – o único meio de escamotear o fator racial que os apartava.
O rapto de cidadãos reproduzia as tripulações da mais poderosa Marinha do mundo – dezenas de milhares de homens foram capturados por grandes armadas do serviço naval durante as guerras napoleônicas. Do mesmo modo, ainda nos planos das sensibilidades, as terríveis condições materiais das primeiras gerações de operários britânicos estabeleciam pontes entre as trajetórias do inglês comum e as dos milhares de escravos capturados na África. Eis o fermento para a abolição do tráfico em 1807, da escravidão na década de 1830 e da legitimação moral dos aprisionamentos feitos pela Royal Navy até a segunda metade do século.
Claro que tudo isso justificou as posteriores conquistas coloniais na África e na Ásia. Mas a aventura abolicionista britânica bem merece uma estátua em cada uma das praças mais importantes das antigas sociedades escravistas das Américas.

Manolo Florentino

OUÇAM SALUSTIANO

Em 1889 um grupo de libertos da região de Vassouras, no Rio de Janeiro, endereçou a Rui Barbosa uma carta na qual exigia instrução pública para os seus filhos. Vivia-se um período delicado; a escrvidão fora extinta havia pouco tempo e a monarquia estava em colapso. Os signatários da carta se declaravam republicanos e diziam que foram eles, os ex-escravos, e não a família real, os autores da abolição. Esta declaração de protagonismo não agradava a Rui Barbosa (1849-1923) e a outros emancipacionistas mais conservadores, para quem a abolição era um problema nacional que tinha sido resolvido pelos “cidadãos”, os “homens esclarecidos”, categorias que não incluíam escravos e libertos.
Mas nem de longe o fim da escravidão foi algo decidido e encaminhado somente pelos senhores brancos e doutores do Império. Desde que aqui aportaram os primeiros tumbeiros, as autoridades policiais e políticas eram sobressaltadas por fugas e inssurreições escravas a comprometerem, dia após dia, os negócios, o sossego e a autoridade senhorial.
Na segunda metade do século XIX, a relevância da rebeldia negra para a falência do escravismo ficou ainda mais evidente. A historiografia está repleta de personagens negros que tinham na abolição a sua principal causa, como Luís Gama, José do Patrocínio e Manoel Querino. Houve outros menos famosos, mas também contundentes propagandistas da liberdade negra, como um certo Salustiano.
Ele ficou conhecido na crônica baiana como o orador do povo, graças à veemência com que discursava a favor da abolição e em apoio a José do Patrocínio sempre que se desincumbia dos seus afazeres de sapateiro. A pregação de Salustiano contrariava de tal maneira a ordem vigente que um delegado de Cachoeira, no Recôncavo baiano, chegou a solicitar ao chefe de polícia orientação para fazer “calar o dito preto”.
Ousadia foi a tônica da atuação dos negros que lutaram contra a escravidão, inclusive às vésperas da abolição. Há várias notícias do envolvimento de libertos africanos com sociedades abolicionistas. Muitos acoitavam escravos fugidos, ou seja, os escondiam enquanto advogados faziam correr na justiça ações de liberdade.
A intensidade das revoltas e fugas coletivas foi uma das maiores evidências da crise do escravismo. A movimentação negra foi tão decisiva que um dos argumentos abolicionistas era de que só o fim do cativeiro libertaria o homem branco, visto como refém da resistência dos seus escravos.
Tinham razão os libertos de Vassouras ao reinvindicar a autoria da abolição.
Talvez por terem sido os ex-cativos os legítimos autores da sua liberdade, as comemorações do 13 de maio só existem hoje em comunidades negras, a exemplo dos camdomblés do Recôncavo baiano e dos congados do Sudeste.

Wlamyra R. de Albuquerque

A TERRA PROMETIDA

Diversos projetos abolicionistas invadiram a cena política brasileira no último quarto do século XIX. O de André Rebouças foi um dos mais radicais. Talvez por isso tenha acabado derrotado.
Mulato, baiano, filho de um membro proeminente da elite política imperial, Rebouças aclimatou-se desde muito cedo à vida na corte. Formado engenheiro militar aos 22 anos, dedicou-se à modernização de portos e à construção de estradas, para dotar o Brasil de infra-estrutura compatível com a chamada Segunda Revolução Industrial, que mobilizava a imaginação técnica de duas jovens nações emergentes: Estados Unidos e Alemanha. No entanto, frustrou-se em sucessivas iniciativas para a modernização material do país.
Sua vida foi reanimada pelo abolicionismo. Era o primeiro movimento de formação de opinião no Brasil, e a ele o engenheiro e empresário emprestou toda a sua energia. Dedicado a compreender os mecanismos que emperravam o desenvolvimento do país, chegou à conclusão de que vivíamos um bloqueio estrutural para a emergência de indivíduos livres. E que a libertação dos escravos, por si só, não seria suficiente. Entendia a abolição como um primeiro passo, ao qual se seguiria uma necessária eliminação do monopólio da terra, pois a autonomia individual só seria possível com a transformação do ex-escravo em pequeno produtor independente. Era este, para Rebouças, o único caminho de libertação dos homens pobres do campo, pretos ou brancos, ex-escravos ou imigrantes.
Sua convicção resultou em diversas propostas, como a do imposto territorial progressivo. No entanto, como os outros liberais brasileiros de seu tempo, ele temia que uma revolução agrária e popular resultasse em guerra civil. E assim viu cancelado seu projeto de refundação nacional. A partir de meados dos anos 1880, passou a considerar que somente o imperador poderia dirigir o processo de libertação dos escravos e uma eventual reforma agrária. Por isso, quando D. Pedro II é banido, Rebouças conclui que não tem mais o que fazer no Brasil, e opta por exilar-se na ilha da Madeira.
Suicida-se em 1898, convencido de que a civilização brasileira, tal como a da Grécia antiga, se extinguira. Com a diferença de que, por aqui, ela sequer florescera.

Maria Alice Rezende de Carvalho

A SANTA E A DÁDIVA

“Meu caro Barão (De Penedo). Esta feita a abolição! Ninguém podia esperar tão cedo tão grande fato e também nunca um fato nacional foi comemorado tanto entre nós. (...) Isabel ficou como a última acoitadora de escravos que fez do trono um quilombo (...) A monarchia está mais popular do que nunca”. Assim Joaquim Nabuco descreveu os dias de júbilo que se seguiram ao 13 de maio de 1888.
A Lei Áurea era mesmo popular, e conferia nova visibilidade à princesa Isabel e à monarquia. No entanto, politicamente, o Império tinha os seus dias contados, ao perder o apoio dos fazendeiros do Vale do Paraíba. Apesar do clima de euforia reinante, parecia ser o último ato do teatro imperial.
Mas, às vezes, o último também é o primeiro. Em meio a uma sociedade de marcas pessoais e de culto ao personalismo, a abolição foi entendida e absorvida como uma “dádiva”. Um belo presente que merecia, portanto, troco e devolução. Isabel converte-se em a “Redentora” e o ato transforma-se em mérito de “dono único”. Decadente e falida como sistema, a monarquia recuperava força no imaginário ao vincular-se ao ato mais popular do Império. A “realeza política” associava-se a uma “realeza mitificada”, quase mágica, senhora da justiça e da segurança.
Nos jornais e nas imagens de época, Isabel passa a ser retratada como uma santa a redimir os escravos, que aparecem sempre descalços e ajoelhados, como a rezar e a abençoar a padroeira. Já a princesa surge de pé e ereta, contrastada com a posição curvada e humilde dos ex-escravos, que parece manter a sua situação – se não mais real, ao menos simbólica. Aos escravos recém-libertos só restaria a resposta servil e subserviente, reconhecedora do tamanho do “presente” recebido.
Estava inaugurada uma maneira complicada de lidar com a questão dos direitos civis. Sem a compreensão de que a abolição era resultado de um movimento coletivo, permanecíamos atados ao complicado jogo de relações pessoais, suas contraprestações e deveres: chave do personalismo e do próprio clientelismo. Nova versão para uma estrutura antiga, em que as relações privadas se impõem sobre esferas públicas de atuação.
Como se fôssemos avessos a qualquer associação com violência, apenas reproduzimos hierarquias que, de tão assentadas, pareciam legitimadas pela própria natureza. Péssima lição de cidadania: a liberdade combinada com humildade e servidão, distante das noções de livre-arbítrio e de responsabilidade individual.

Lilia Moritz Schwacz

GUERRA DAS VERSÕES

Desde a metade do século XIX a monarquia mostrou-se disposta a aprovar projetos abolicionistas. Em meio ao aumento da violência em conflitos entre escravos e senhores, as leis do Ventre Livre (1871) e dos Sexagenários (1885) buscavam manter a grande produção agrícola e preservar a ordem social.
Este processo fez crescer a oposição dos proprietàrios escravocratas, que engrossavam a fileiras republicanas. Ao afastar-se deles, a monarquia se preparava para construir uma nova base de legitimidade, sintonizada com grupos emergentes (como os setores médios urbanos) e com as expectativas gerais da população. Para isso, investiu pesado na propaganda que associava a abolição a uma ação exclusiva da princesa Isabel. Uma espécie de febre monarquista, de natureza cultural e religiosa, foi difundida naquele momento. Valendo-se de concepções de realeza herdadas da África, foi natural para os negros adotar essa idéia de abolição como uma redenção concedida pela monarquia. Ela se espalhou pelos espaços da cultura popular, fortalecida em seu caráter místico e africanizado.
Após a queda da monarquia, a República tentou ligar-se à memória da abolição. Seu principal argumento era a recusa do Exército em capturar os escravos fugidos. Reinvindicava-se, assim, o reconhecimento dos republicanos militares como atores da abolição e redentores da pátria livre. Nos manuais escolares, o ensino da história da abolição exaltava como heróis republicanos Silva Jardim e Deodoro da Fonseca. Nas comemorações oficiais da abolição, o 13 de maio e o 15 de novembro eram apresentados como datas complementares de um mesmo processo de modernização do país, marcos de uma nova era que proporcionou o exercício pleno da cidadania, abrindo as portas do Brasil ao progresso e à civilização. De modo complementar, ligavam o sistema monárquico à escravidão e ao atraso do país, além de silenciar o nome da princesa Isabel no processo de aprovação do projeto convertido em lei.
Mas a estratégia não conquistou os libertos e afro-descendentes. Houve derramamento de sangue e tentativas de resistência após a proclamação da República. O novo regime foi assombrado por fuzilamentos em massa, espancamentos de negros fiéis à sua “Redentora”, prisão e deportação de líderes da Guarda Negra (espécie de milícia organizada para defender a monarquia e a princesa Isabel) e conflitos com ex-escravos que se recusavam a trabalhar para fazendeiros republicanos. Muitos negros, convencidos de que deviam sua liberdade ao trono, tornavam-se mártires pela monarquia. Conseqüentemente, foram esquecidos pela República.

Robert Daibert Júnior

A COR DA CULTURA

Em 1902, o afro-descendente Rodrigues Alves assumia a Presidência da República. No entanto, foi exatamente na gestão desse afro-descendente que o Brasil começou a por em prática, a partir de sua capital, um programa cultural visando europeizar-se de vez. Desde a abolição, a elite se empenhava em construir a nação que sempre pretendeu. Nela, a cultura africana e mesmo a presença negra eram indesejadas. Afinal, não era animador pensar no futuro de um país de “selvagens inferiores” e “negros boçais e degenerados”, nas palavras de um literato como José Veríssimo (1857-1916).
Apesar disso, os descendentes dos antigos escravos buscaram a auto-afirmação e a inclusão social por meio de suas práticas culturais. O tempo que transcorreu da abolição até o recenseamento da população, em 1920, foi, para artistas e intelectuais afro-descendentes, um período de intensa atividade. Escrevendo e atuando em dezenas de montagens teatrais em circos cariocas e pelo Brasil, Benjamin de Oliveira, o “palhaço negro”, cria o teatro popular brasileiro, tão importante quanto a televisão em nossos dias. Da mesma forma, o período marca o apogeu de Eduardo das Neves, adversário porém amigo de Benjamin; da compositora Chiquinha Gonzaga; do compositor e regente Paulino Sacramento; do jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume, pioneiro da crítica carnavalesca; de Zeca Patrocínio, pioneiro do cinema brasileiro; de Hemetério dos Santos, autor da primeira gramática da língua portuguesa, bem como o surgimento de Pixinguinha e Grande Otelo, para ficar só nesses exemplos.
Nessa época, se fortalecem e se difundem no eixo Salvador-Rio de Janeiro, por intermédio da Ialorixá Mãe Aninha, as bases do culto aos Orixás Jeje-Nagôs, o mais forte traço da africanidade brasileira. Enquanto isso, os batuques bantos recriados no meio rural completam o amálgama do qual nasceu o samba.
Era a cultura brasileira se plasmando pelas mãos da “gente de cor”. Logo depois, todo esse universo de ações e intenções seria apropriado, e mais tarde sufocado, pela indústria cultural globalizada.
Na cena cultural brasileira de hoje, pretos e mulatos somos, quando muito, coadjuvantes, contando-se nos dedos aqueles de nós que chegam ao protagonismo. E dos que chegam, boa parte tem que abrir mão de sua essência e de sua afro-descendência, tolhida por modernas formas de escravidão, cativa da mídia e do mercado – que ainda nos querem do jeito que a sociedade brasileira nos queria cem anos atrás.

Nei Lopes

ABOLIÇÃO QUE NÃO VEIO

A escravidão foi abolida oficialmente na Mauritânia em 9 de novembro de 1981 pelo decreto nº 81.234. Quase três décadas depois, as relações sociais no país indicam que naquele país africano a “lei áurea” simplesmente não pegou.
A população é composta de dois grupos étnico-raciais e culturais: os negros-africanos e os árabo-berberes. Os negros-africanos foram os primeiros a ocupar a região, por volta do século III a.C. Este grupo era resultado de interpenetrações de sociedades diversas. A partir do terceiro século da era cristã, os povos negros começaram a manter intensas relações com os berberes recém-chegados da região do Magrebe., também eram oriundos da mistura de vários povos. Por isso, não faz sentido pregar pureza étnica, cultural ou racial de qualquer daqueles grupos. No entanto, esta crença existe.
No mundo rural, a escravidão predomina na vida doméstica, de maneira aberta e moralmente aceita. Já no ambiente urbano, os árabo-berberes fazem uso de mecanismos sutis: seus cativos negro-africanos trabalham como vendedores de água, descarregadores nos portos, e nas tarefas domésticas. O dono não gasta quase nada para alimentar seu escravo. E este tem a função de frutificar ao máximo o investimento do dono.
As sociedades negro-africanas de castas justificam seus mecanismos com base em uma ordem divina ou biológica. A ruptura deste sistema é quase impossível, já que há uma submissão quase cega. A luta pela mudança de mentalidade fica mais complicada quando não há vontade política. Durante o período colonial, a França nunca lutou contra as práticas escravocratas até 1960. Para não perder o apoio da classe dirigente e manter o controle sobre a população, as autoridades coloniais faziam vista grossa quanto à escravidão.
A persistência dessas práticas tem como finalidade um rígido controle político sobre as sociedades negro-africanas. Além disso, ter escravos implica maior prestígio social, uma vez que os árabo-berberes sempre viram a necessidade de trabalhar como algo indigno de pessoas bem-nascidas. Postura que, aliás, era encontrada também no contexto da escravidão brasileira.
Desde o início da década de 1980, grupos negro-africanos e árabo-berberes da Mauritânia vêm denunciando tratamentos discriminatórios nos planos profissional, habitacional, de acesso a terras e nas políticas. Qual não foi minha surpresa ao colocar no Google as palavras “esclavage en Mauritanie”. Há muitos artigos e relatórios de órgãos internacionais e ONGS mauritanas – como a SOS-Esclaves e Mouvement El Hor – em prol da erradicação total das práticas escravocratas.

Alain Pascal Kaly

CRONOLOGIA

1772
O julgamento do escravo fugitivo Somersett abre precedente para que a justça britânica não mais apoie a escravidão.
1794
Primeiro país a proibir a escravidão, o Haiti tem sua legislação abolicionista revogada por Napoleão em 1802.
1807
O Parlamento britânico aprova o “Abolition Act”, que proibia o tráfico de escravos na Inglaterra.
1810
Tratado de Aliança e Amizade entre Portugal e Inglaterra. Estabelece a abolição gradual da escravidão e delimita as possessões portuguesas na África como as únicas que poderiam continuar o tráfico.
1823
José Bonifácio, na Assembléia Constituinte, apresenta uma representação sobre a abolição da escravatura e a emancipação gradual dos escravos.
É aprovada a lei que proíbe a escravidão no Chile.
1826
A Inglaterra impõe ao governo brasileiro o compromisso de decretar a abolição do tráfico em três anos.
1829
Durante o governo de Vicente Guerrero, é decretada a abolição da escravatura no México.
1831
Lei Feijó proibe o tráfico e considera livres todos os africanos introduzidos no Brasil a partir desta data. A lei foi ignorada e chamada popularmente de “lei para inglês ver”.
1833
É sancionada no Parlamento a extinção da escravatura, que é estendida a todo o Império britânico.
1845
“Slave Trade Suppression Act (Bill Aberdeen)”. Lei britânica que proibia o comércio de escravos entre a África e a América.
1848
Em1794, a convenção republicana francesa votou pela abolição nas suas colônias, mas somente em 1848 os escravos são emancipados.
1850
Lei Eusébio de Queiróz. Proíbe o comércio de escravos para o Brasil.
1854
Lei Nabuco de Araújo. Previa sanções para autoridades que encobrissem o contrabando de escravos.
É decretado o fim da escravidão na Venezuela e no Peru.
1865
Com o fim da guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), o presidente Lincoln declara extinta a escravidão em todo o território norte-americano.
1869
Portugal torna ilegal a escravidão, mas já havia decretado liberdade dos escravos em territórios desde 1854.
1871
Lei do Ventre Livre. Concede liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir dessa data, mas os mantém sob a tutela dos seus senhores até atingirem os 21 anos.
1874
Os escravos são emancipados na Costa do Ouro (atual Gana) após a conquista do reino de Axante pelos ingleses.
1880
Joaquim Nabuco (deputado de Pernambuco) apresenta à Câmara um projeto de lei propondo a aboliçao da escravidão com indenização até 1890.
Fundação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão e de seu jornal, “O Abolicionista”.
1883
Publicação de “O Abolicionismo”, de Joaquim Nabuco.
Criação da Confederação Abolicionista / panfleto de André Rebouças, “Abolição imediata e sem indenização”.
1884
Extinção da escravidão no Ceará.
1885
Lei dos Sexagenários (Saraiva-Cotegipe), que concede liberdade aos escravos com mais de 60 anos.
1886
O tráfico foi oficialmente extinto em Cuba, que passou a receber mão-de-obra chinesa para trabalhar no plantio de cana-de-açúcar.
1887
Quilombo de Jabaquara.
Fundado por José do Patrocínio o jornal abolicionista “Cidade do Rio”.
1888
Lei Áurea.
Extinguiu definitivamente a escravidão no Brasil.
1889
Proclamação da República.
1890
Acordo com a Inglaterra para proibição do tráfico negreiro e abolição da escravatura na Tunísia.
1894
A Inglaterra decreta em Gâmbia e emancipação gradual da escravidão. Os escravos tornavam-se libertos com a morte do senhor ou mediante pagamento.
1897
A escravidão é abolida em Madagascar. Em Zanzibar, o status legal da escravidão é abolido, mas a proibição da prática só ocorre em 1909.
1901
A Inglaterra torna a escravidão ilegal no sul da Nigéria, mas a abolição no norte do país só ocorre em 1936.
1906
A escravidão é proibida na China.
1928
As leis que aboliam a escravidão nas colônias britânicas não eram aplicáveis ao protetorado de Serra Leoa, onde a escravidão só foi considerada ilegal a partir desta data.
1942
A Etiópia manteve a escravidão até esta data, indiferente às pressões abolicionistas internacionais. Só se tornou independente na década de 1930.
1956
Com a retomada de sua soberania, a escravidão no Marrocos foi desaparecendo do reino sem uma legislção específica, e a instituição se extinguiu.
1962
A Arábia Saudita abole o status legal da escravidão.
1980
Na Mauritânia, a lei de 1980 foi a última das quatro tentativas legais de abolir a escravidão no país. Atualmente, ainda há indícios desta instituição no país.
1990
A abolição foi abolida no Sudão na década de 1950, mas a prática foi retomada nos anos 90 com a guerra civil.

Fonte: Especial Abolição 120 anos – Revista de História da Biblioteca Nacional – maio 2008



4.9.08

Esmeralda Ortiz



Esmeralda Ortiz chega com uma proposta de trabalho com o Massa Negra. O grupo e a escritora. Aqui e agora. São Paulo, música e letra, som e palavra, música e literatura. Arte brasileira e universal. Cultura negra.
A história de vida, da também jornalista e agora revelando-se cantora e compositora ao apresentar-se como tal ao grupo de músicos, é muito marcante.
Ex-moradora de rua, deu um drible de craque no destino, marcou um golaço e hoje em dia encontra-se com dois livros de sucesso publicados. Eu a havia visto no quadro Profissão Repórter, comandado pelo seu colega de profissão, o jornalista Caco Barcelos, no Programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, numa tentativa infrutífera de realizar uma entrevista exclusiva com os Racionais Mcs. Após algum tempo, já radicado em São Paulo, pude encontrá-la e trocamos poucas palavras, na Virada Cultural, um evento de arte e cultura que ocorre anualmente em Sampa.
Reencontro-a novamente, ao vê-la entrando no estúdio onde fazemos os nossos ensaios, a nossa música. Ela foi trazida pelo Cliff Portugal, percussionista do Massa Negra e dono do Obadudu, um bloco carnavalesco da cidade de São Salvador. Não pude ficar, assim que terminamos o ensaio, saí, após uma breve discussão sobre a homenagem que faríamos a Bob Marley. Soube depois, por ela mesma, ao telefone, que ela tem um contato com o PAC (Projeto de Apoio à Cultura) do estado de São Paulo e que havia me indicado para compor, juntamente com o grupo Massa Negra, uma parceria e apresentar um projeto lá no PAC.
Hoje ela me disse que andou adoentada, uma gripe forte, mas que estava curada. Marcamos um encontro na Galeria Olido. Vou levá-la para conhecer o mais novo Ponto de Leitura da cidade. Ela trará as suas letras e se tudo correr bem, começaremos a trabalhar juntos.

Com Amor, Axé!
Jorge

22.8.08

OUTRAS NEGRITUDES



Vão querer saber, questionar a razão pela qual ponho-me, até com uma certa insistência, a trazer à luz o tema referente ao negro, à cultura popular negra. Em poucas palavras esclareço que a luta do negro na nossa atual conjuntura cultural, econômica, social e política, somada ao racismo explícito e burro, à discriminação declarada e doente, continua e continuará enquanto houver sol. Assim sendo a minha briga pelo poder, aquele que faz a diferença entre os diferentes, deve constar da agenda política de toda e qualquer nação justa e soberana. O negro em sua diferença não é inocente, não é santo e também não é um coitado qualquer. Deve ser, mesmo assim, lembrado e respeitado como a um ser humano íntegro, com história, princípios e identidade. Disso tudo: Sinfonia Negra, Massa Negra, Cabeça de Negro e outras negritudes.

I Love You, Axé!
Jorge

21.8.08

VONTADE DE VIVER MAIS



O meu pai, Álvaro José Matheus, músico nato, compositor e um cavaquinista (tocador de cavaquinho) virtuoso, segundo o meu cunhado, Dogmar Souza (Massa Negra. Duo Cabeça de Negro), é merecedor de um belíssimo prêmio pelo seu casamento de 53 anos com a minha querida Maria Terezinha Matheus, minha amada mãe. Ele, pelo seu pleno domínio que tem sobre a construção civil, um grande empreiteiro que foi, sonhou em fazer de mim um engenheiro. Estudei Direito e estou músico, com toda certeza, para todo o sempre e séculos e séculos, Amém.
I Love You, Axé!
Jorge

20.8.08

MASSA NEGRA, BOB E JOÃO EM SP



Estou no camarim. Espelho, pia, a porta do banheiro rangendo e harmonizando-se com a discotecagem do DJ Chocolate, amigo do Cliff Portugal e agora o meu amigo também. Logo estamos no palco para celebrarmos a memória do nosso eterno e amado mestre Bob Marley. O Massa Negra está dando os seus primeiros passos. Tendo um pouco mais de seis meses de existência, vem caminhando com as próprias pernas, atraindo inúmeros aliados e aliadas. Estamos no Bexiga, Bela Vista, região central da cidade de São Paulo, capital do estado paulista. Estamos no coração do Brasil e como cantou o poeta, vivemos na melhor cidade da América do Sul. João Gilberto de passagem pela cidade, comemorando os cinquenta anos de uma das suas mais preciosas invenções, a Bossa Nova, deu o toque, a dica: São Paulo I Love You.

I love you, Axé!
Jorge

19.8.08

Tributo a Bob Marley



O palco mais uma vez me espera, recebe. À mim e aos meus parceiros na música e pela música. Estamos prestando uma homenagem ao grande músico negro, o jamaicano Bob Marley. O grupo Massa Negra, de uma forma bastante simples, original e verdadeira, sobe ao palco do Café Aurora em São Paulo, em tributo ao Rei do Reggae, um dos artistas mais influentes no universo da Música Popular do Planeta Terra.



Com amor, Axé!
Jorge

24.7.08

EXPERIMENTAR DEUS






Leonardo Boff escreveu-me: Jorge Matheus, sinta Deus no coração. E concluiu: Experimentar Deus não é pensar sobre Deus. É sentir Deus a partir do coração puro e da mente sincera. Experimentar Deus é tirar o mistério do universo do anonimato e conferir-lhe um nome, o de nossa reverência e de nosso afeto. Experimentar Deus é desenvolver a percepção bem-aventurada de que, na radicalidade de todas as coisas, Deus, universo, pessoa humana são um só mistério de eternecimento e de amorosidade que irrompeu em nossa consciência, fez histórias, ganhou sua linguagem e culminou na alegre celebração da vida.
Experimentar Deus não é pensar em Deus, mas sentir Deus com a totalidade de nosso ser. Experimentar Deus não é falar de Deus aos outros, mas falar de Deus junto com os outros. Deus perspassa toda a realidade. Pode, por isso, ser percebido e experimentado nas mais diferentes situações da vida e em cada detalhe da vida pessoal e do universo.
Embora sem nome adequado, Deus arde em nosso coração e ilumina nossa vida. Então não precisamos mais crer em Deus. Simplesmente sabemos dele porque o experimentamos.

A montanha é montanha.
A montanha não é montanha.
A montanha é montanha.

Experimentar Deus...
é percorrer repetidas vezes esse trajeto... que não será sempre o mesmo, porque a percepção do viajante vai se alterando, aprofundando. Não há contradição. Há sim a liberdade de experimentar a Presença que se revela em todas as coisas, em todas as circunstâncias, em todas as pessoas. É experimentar a Presença que se vela, que se retrai, mas que é Presença. Experimentar Deus... é experimentar o mistério. É estar vivo.

(Leonardo Boff é um dos mais conhecidos teólogos da libertação e conferencista requisitado internacionalmente. É professor emérito de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Escreveu mais de sessenta livros nas áreas de teologia, espiritualidade, ecologia, filosofia, antropologia e mística, que foram traduzidos para várias línguas.)

Com amor, Axé!
Jorge

23.7.08

ORAÇÃO PARA RECONCILIAR




EU LHE PERDOEI E VOCÊ ME PERDOOU,
EU E VOCÊ SOMOS UM SÓ PERANTE DEUS.
EU A AMO E VOCÊ ME AMA TAMBÉM,
EU E VOCÊ SOMOS UM SÓ PERANTE DEUS.

EU LHE AGRADEÇO E VOCÊ ME AGRADECE
OBRIGADO, OBRIGADO, OBRIGADO
NÃO EXISTE MAIS NENHUM
RESSENTIMENTO ENTRE NÓS.
ORO SINCERAMENTE PELA SUA FELICIDADE.
SEJA CADA VEZ MAIS FELIZ

DEUS LHE PERDOA,
PORTANTO EU TAMBÉM A PERDOO

JÁ PERDOEI A TODAS AS PESSOAS
E ACOLHO A TODAS ELAS COM O AMOR DE DEUS.
DA MESMA FORMA, DEUS ME PERDOA OS ERROS
E ME ACOLHE COM O SEU IMENSO AMOR.

SEICHO-NO-IE DO BRASIL
www.sni,org.br

Com Amor, Axé!
Jorge

22.7.08

Rosário dos Filósofos




nosso coração
estará intranquilo
enquanto não
voltarmos a êle
pois a essência
superior dos elementos
se eleva ao fogo
que está acima
das estrelas
é justo que aspiremos
voltar a êle
fonte de todas as coisas


Arnaud de Villenueve


(Alquimista catalão, em 1250 registrou suas experiências num volumoso tratado sobre o álcool e suas utilizações. Divulgadas suas idéias, o autor caiu em desgraça com a Santa Inquisição, que mandou sacrifica-lo na fogueira como bruxo. Por sorte, Arnaud não só não foi queimado como também consagrou-se, pois a uma de suas poções foi atribuída a cura do então Papa.)

21.7.08

AMOR EST




TRANSMUTA, ORA, LABUTA

ERRARE HUMANO EST

PERMITA-ME CANTAR-TE

VIRTUTES AMOR EST

POTESTATES AMOR EST

ARCHANGELI ANGELI



LEGE,LEGE, RELEGE

ORA, LABORA ET INVENIAS

PERMITA-ME TOCAR-TE

SERAFHIM AMOR EST

CHERUBIM AMOR EST

THRONI DOMINATIONE



Com Amor!
Jorge

17.7.08

Jorge Luis Aparecido Matheus



Apareço de novo por aqui. Este é o lugar em que vou expor-me. Para que eu possa aparecer. Eu quero aparecer e apareço por aqui. Apareci novamente, em uma cidade diferente. Há cinco meses eu vivo em São Paulo. Morei aqui de 1979 à 1983. São Paulo me faz querer aparecer e eu apareço, pelo menos por aqui.

Eu sou Aparecido. Uma homenagem à rainha e padroeira do Brasil, para os católicos. Sou Luis também. O homenageado aqui é o meu avô, pai da minha mãe que se chama Maria Terezinha. A minha principal Maria. Tem Maria dentro do meu coração. Marias. Bethânia, Rosa, filhas da Maria Carolina. No meu coração também tem Marianas, uma é filha e a outra foi minha mulher. As filhas da Carol, também são minhas filhas. Tive também três filhos. O Dersu Matheus, já falecido. O Cassiano Matheus e o Heitor Lopes Matheus.

Nasci e cresci em Campinas-SP. Lá compus a minha primeira canção: Longe Dele. Nela, falo sobre o violão, o meu querido violão. O meu primeiro violão foi comprado aqui em São Paulo. Vim com o meu pai comprá-lo e comprei-o com o meu próprio dinheiro. Tenho as mãos grandes e bem que poderia ser um pianista. Optei pelo violão e arranjo minhas harmonias e melodias nele, com um prazer imenso.






16.7.08

Do início ao sim


Pronto. Quase que perfeito. Após o primeiro passo, uma longa caminhada. E é apenas o começo. Um recomeço constante, diante da fúria babilônica da metrópolis.

Retorno a postar, com palavras e imagens. Incentivado por meu mais que amigo Pita Araújo, ponho-me a declarar, como quer o meu cumpadre Nano, o meu testemunho pela liberdade de expressão, em qualquer sentido ou direção. O bagulho é doido e se quiser enfrentar o dragão, vai ter que aprender a jejuar e cantar o tempo inteiro. Quem canta reza duas vezes. Eu canto-rezo, e estou torcendo pela paz, pela alegria, pelo amor e pelas moças bonitas.

Canta, canta minha gente deixa a tristeza prá lá Canta forte, canta alto, que a vida vai melhorar (Martinho da Vila)



um passeio pela cidade

passo-a-passo

olhando tudo e todos

estou de volta

em um quarto de apartamento

ficarei bor um bom tempo aqui


enquanto isso vou fazendo música

vou fazer música em grupo

os companheiros músicos

estão avisados



faz sentido não ter culpa

o que me preocupa

é o tempo perdido

não posso mais perder

o tempo de vista




um tempo novo começando

mas que tem tudo ligado

com o que passou

com o que passa

eu até acho graça

pois senão nã teria graça

deixar o tempo passar

sem até mesmo percebê-lo

deixo-o passar,pode passar

envelheço na cidade

e ela já não é como antes

nada será como antes

e promover a paz e a justiça

é uma delícia

o sol há de brilhar

mais uma vez



tem que se fazer isso
dar carinho e amor



tem-se que aprender
a dividir
e dividir
divisar
mesmo



Com Amor, Axé!
Jorge