14.1.06

Bob Marley, a vida depois da morte


Fernando Gabeira

O som do reggae vem do quarto dos meninos e você fica atento para distinguir a música. É a voz de Bob Marley. Running and running and running away. Mas ele não morreu há 25 anos? Deve haver um segredo para a vida depois da morte.

No caso do menino que nasceu de mãe negra e pai inglês, no interior da Jamaica, no fim da II Guerra, o segredo tem muitas faces e não se deixa desvendar num passe de mágica.

Muita gente cantou a saga dos oprimidos. Bob Marley viveu o inferno da pobreza nos bairros pobres jamaicanos e a expressou com a força de sua experiência. É uma tese.

Bob Marley surgiu num momento em que as revoluções clássicas do tipo marxista estavam em colapso. E as minorias raciais nas grandes metrópoles tinham um grande anseio de identidade. Ele a ofereceu na forma de letras diretas e lindas melodias. Outra tese. E assim de tese em tese é possível explicar Bob Marley e seus admiradores, sem admitir que tudo isso é muito pouco para descrever seu grande impacto estético da década dos 70.

Para mim, Bob Marley não chegou sozinho, como se caisse dos céus com sua bandeira da Jamaica, a grande foto de Haile Selassie. Mesmo sem monitorar a música caribenha, que já havia nos dado o calipso, lançado o ska e emergia agora com o reggae, intuía-se na Europa, onde vivia no exílio, que alguma coisa estva contecendo na Jamaica.

O primeiro sinal foi um filme cult que passava na televisão. The harder they come era seu nome. Contava a história de um jovem e talentoso cantor, perseguido pela polícia. Era um rude boy. Um nome dado às violentas gangues juvenis que dominavam os bairros pobres de Kingston, em conflito permanente com a lei.

Portanto, antes de Bob Marley nos ser apresentado, já se conhecia o fascinante meio social onde cresceu e o tipo de música que brotou desse caos urbano.

Os bairros pobres de Kingston com seus barracos destelhados eram apenas um cenário que projetaria a maior estrela do Terceiro Mundo. Ele chegou ali com uma história singular.

Robert Nasta Marley nasceu num vilarejo rural da Jamaica, chamado Nine Miles. O pai, o capitão inglês, Norval Marley, seduziu uma garota negra de 17 anos, Cedella, e a abandonou com o filho no colo.

O menino cresceu admirando a coragem de mãe que enfrentou não só o abandono mas também o estigma de ter transado com um homem branco. Embora na cabeça de Robert isso não tinha trazido nenhuma hostilidade especial aos brancos, foi o avô, da tribo dos Cromantees, valentes escravos que se batiam contra os colonizadores, que encarnou a figura paterna. O avô era um obeah, uma espécie de curandeiro.

A força da jovem Cedella e a espiritualidade do avô foram as influências que marcaram o menino a quem se atribuiam dons extraordinários. Se vivesse com um distante pai inglês, talvez sua base de lançamento fosse menor, o vôo mais curto.

Num momento de sua infância o pai resolveu trazê-lo para Kingston. E o abandonou, deixando-o na guarda de outra mulher. Nesse momento, não era o filho de Narval que ganhava as ruas miseráveis de Kingston e começava a descobrir seus segredos. Era o filho de Cedella, o menino influenciado pelo avô que conseguiria transitar pelas ganges de Rudes Boys, participar de alguns conflitos de rua, mas emergir com uma clara consciência de que era preciso transcender esse mundo através da música que o redimisse.

Na segunda vez que volta a Kingston, agora com sua mãe Cedella, Bob Marley pode atenuar a angústia materna com essa frase: não se preocupe, não vou trabalhar para eles. Ele queria dizer com isso que frequentava as gangues, mas que seu olhar estava bem na frente. Mas não disse para a mãe de onde iria tirar o combustível para voar bem acima das violentas gangues e da polícia. Esse combustível eram a música e a religião.

Embora entrelaçadas, a música precedeu à mensagem religiosa. No momento em que iniciava sua carreira, o ska dava lugar ao reggae com sua cadência favorável à ênfase nas letras, ao comentário social. Tanto o ska como o reggae faziam parte de um longo diálogo da música caribenha com os rhytm and blues dos negros americanos.

Bob Marley faria uma música negra nas suas raízes. E cantaria a libertação da diáspora negra, esmagada na babilônia branca, com seus pecados , seu materialismo e decadência.

Para quem tivesse vivido a década dos 60, isso não era absolutamente novo. A expressão Babilônia era comum entre os Black Panthers, revolucionários negros americanos que fizeram algumas escaramuças armadas e foram esmagados.

No diálogo com o embaixador americano, Burke Elbrick, em 1969, comentei a existência dos Black Panthers. O título do relato do sequestro de Elbrick, no livro Que é Isso Companheiro, é Babilonia, Babilônia.

Uma década depois, Bob Marley revestia a causa negra de um véu espiritual e uma disposição pacifista. Além disso, não falava a linguagem direta da política, comum aos Black Panthers mas a da música que iria percorrer com facilidade não só os guetos de Kingston mas as ruas de Salvador e São Luis, para mencionar apenas o impacto nacional .

Uma novidade que ele captou estava há muito tempo nas teses do controvertido profeta jamaicano Marcos Garvey. Ele andou pelo Estados Unidos, foi preso por lá e voltou à Jamaica para divulgar suas idéias. Segundo Garvey, não havia salvação para o povo negro, dentro dos portões da Babiliônia. Era preciso voltar à Africa, que seria o verdadeiro Sion e onde surgiria o verdadeiro Jeová, no corpo de um imperador negro.

Dizem que Garvey jamais mencionou Haile Selassie e a Etiópia diretamente. Mas quando o Ras Tafari assume o trono a Etiópia, o quadro se completou na cabeça de alguns seguidores, que se tornariam os rastafaris.

Os rastafaris talvez passem despercebidos como mais uma seita, ou mais uma leitura negra do cristianismo, se não tivesse uma relação especial com a maconha. Para eles, a ganja, como assim a chamavam, era uma erva sagrada, com grande poder espiritual e capacidade de ampliar as consciências.

No coração da Babilônia a maconha tinha sua história. Proibida nos Estados Unidos e na Europa era consumida assim mesmo. As grandes campanhas proibitivas tinham fracassado. Algumas eram francamente ridículas. Fuma maconha e voce será um assassino, um homosexual ou um comunista, dizia uma delas. Filmetes mostravam mulheres fumando, tirando a roupa e se jogando enloquecidas das janelas de arranha-céus.

Através de Bob Marley o incipiente movimento de legalização da maconha ganhava novo impulso. Ela aparecia associada à luta de libertação dos negros, ampliava a consciência e era envolvida na aura do sagrado.

Quando Bob Marley percorria a Europa durante o verão, no meio da década dos 70, a força de sua música era fortalecida por duas tendências: a busca de identidade dos jovens imigrantes negros e a aliança tática com os maconheiros, que viam na mensagem de luta e espiritualidade uma forma de legitimar a erva.

A volta à África, o foco no imperador Salassie, eram elementos secundários, que não comprometiam, pelo contrário, adicionavam um toque bizarro à sua trajetória.

Embora tenha visitado a Jamaica, onde foi recebido com grandes manifestações populares, Salassie não acreditava na lenda que os rastafaris criaram em torno dele. Chegou a dar algumas terras perto de Adis Abeba, para os quisessem voltar ao continente.

O Brasil também não tinha razão para acreditar na santidade de Salassie. Ele visitou o país e sua passagem é contada na biografia de Juscelino Kubistcheck. JK era o presidente orgulhoso de receber um imperador. Acontece que no meio de uma solenidade, um general se aproxima do imperador e comunica a dura notícia: havia um golpe de estado na Etiópia e Selassie perdera o trono.

Os momentos seguintes foram difíceis pois não havia comunicação fácil com a Etiópia. Selassie queria voltar e não tinha como. No bolso, apenas um cheque de US$ 60 mil. Mas quem iria descontar um cheque de um imperador caído. JK habilmente convenceu seu ministro das finanças, Horácio Lafer, a avalizar o cheque. Lafer relutou. As chances de transformar aquilo em dinheiro eram mínimas. JK argumentou que não era sempre que ela podia ajudar a um imperador. Lafer, a contagosto, aceitou. Selassie voltou e retomou o trono.

Quando Selassie visitou a Jamaica, Bob Marley estava nos Estados Unidos. Ao voltar a Kingston sentiu o impacto da passagem nos cabelos de Rita, sua mulher. Ela tinha se convertido diante do visão do imperador.

Os rafastaris que vivem hoje na Etiópia se deram mal. Concentram-se em Shashemene, uma cidade de 100 mil habitantes e são discriminados pelos africanos. Selassie foi varrido por uma revolução e as terras dadas por ele progressivamente tomadas dos rastas.

Apesar de um complexo roteiro de libertação do povo negro, foi o contato com a política jamaicana o que quase destruiu Bob Marley. Dizem que tinha uma leve simpatia pelo PNP (People’s National Party) dirigido por Michael Manley. Seu opositor era Ewduard Seaga do JLP (Jamaican Liberal Party). Em 1976, alguns membros do partido de Manley pediram a Marley que fizesse um concerto para baixar a tensão pré-eleitoral. O título do concerto era “Sorria Jamaica”.

Os boatos indicavam também que o CIA apoiava o partido de Seaga. A verdade é que Marley, Rita e seu empresário Don Taylor foram metralhados. Don recebeu cinco tiros, Rita foi alvejada na cabeça e Bob no peito.

Ele foi advertido para não fazer o show. Várias ameaças de morte em forma de boato chegaram a ele. Houve até um grupo de voluntários que fazia sua segurança. Mas no dia do atentado, não havia nenhuma segurança especial. Dois carros brancos estacionaram, alguns homens cercaram a casa e outros simplesmente metralharam os ocupantes que ensaiavam para o show “Sorria Jamaica”.

Talvez tenha sido seu grande impacto negativo no próprio pais. Sofrer um atentado na Jamaica onde era cada vez mais amado e já se tornava o grande nome do Terceiro Mundo.

Bob Marley deve ter percebido ali como era difícil fugir da violência. Na verdade a baixaria tomou conta da própria industria musical jamaicana. O grupo de Marley chegou a espancar um empresário por causa de contas que não fechavam. Peter Tosh foi vítima de atentado, apanhou da polícia, era uma atmosfera de horror.

Embora seu grande sucesso mundial tenha sido No Woman no cry, Bob Marley, de uma certa forma, deu continuidade a uma tendência patriacal no movimento negro. As mulheres sofriam com os Black Panthers. Rita Marley sofreu, silenciosamente, ao lado do marido. Às vezes, ele se encontrava com outra no mesmo hotel em que estavam hospedados. Para se ter uma uma idéia em números de sua performance: dos 11 filhos que fez, apenas quatro são de Rita.

Nunca ficou claro como um homem que sentia-se com uma grande missão e tinha um grande apetite sexual, possa ter descuidado da saúde. Os de Bob começaram com um ferimento no pé, quando jogava futebol. Era preciso cuidado e até mesmo a amputação de um dedo.

No seu livro de memórias, Rita acha que ele se descuidou não por uma razão religiosa, pois os rastas não aceitam amputação. Ela afirma que ele tinha medo de aparecer manco nos palcos, de enfraquecer sua presença como artista.

Em 1980, quando corria no Central Park, Bob Marley teve um desmaio. Consultou um médico e descobriu que tinha câncer no cérebro. Dois dias depois estava cantando em Pittsburgh mas já sabendo que a morte o rondava. Durou oito meses, cantando e resistindo.

Depois dele, além das brigas de bastidores pela sua herança, o reggae tornou-se mais ameno. Perdeu seu conteúdo de crítica social. No entanto, Bob Marley vive. Talvez porque ainda existam milhões de jovens negros em busca de identidade, milhões de fumantes de maconha pedindo liberação. O mais provável no entanto é que ele viva principalmente pela forca da sua obra, que independente das mensagens do momento, é a continuidade da negra, do rithm and blues, do jazz, do samba e agora dos rappers que, como ele, vivem no meio do caos urbano e cantam a própria experiência. Há uma complexa constelação no céu onde até hoje brilha a estrela de Marley.

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