14.1.06

Vozes d'África

MARIO SERGIO CONTI

Ryszard Kapuscinski ocupou durante décadas uma das mais temerárias funções jornalísticas, a de correspondente no exterior. O correspondente deve se informar sobre um país a respeito do qual seu conhecimento é limitado. Deve usar um idioma que não é o seu. Deve buscar informantes dos quais pouco sabe. Deve estar por dentro de notícias que lhe são necessariamente fugidias. E, por fim, deve oferecer a seu público um relato organizado de situações de uma complexidade formidável.
Contra os clichês românticos, glamorosos ou aventureiros do correspondente no exterior, sobretudo o de guerra, Kapuscinski traça em O imperador um retrato pouco lisonjeiro do metiê:

É preciso dizer que o círculo de correspondentes estrangeiros, profissionais que se enfiam nos mais distantes recantos do mundo, é formado por homens cínicos, duros, que já viram de tudo, passaram por todos os tipos de experiência e que, para poder exercer seu ofício, enfrentam um sem-número de perigos, dos quais a maioria das pessoas nem sequer tem idéia. Por causa disso, tornaram-se homens mais endurecidos e, quando exaustos ou raivosos, são realmente capazes de se queixar a imperadores das péssimas condições de trabalho e da falta de cooperação das autoridades locais.

Além das dificuldades corriqueiras da função, Kapuscinski teve de enfrentar outras três, ainda maiores. Primeiro, ele foi correspondente não num país definido, mas na África inteira. Nascido em 1932, por mais de trinta anos ele fez reportagens no Irã, na Índia, na União Soviética, no Paquistão, no Chile, em El Salvador, na Bolívia e em Honduras. Mas sua experiência profissional definidora se deu na África. E a palavra "África", como ele diz em Ébano, é um rótulo ocidental comodista e redutor, que comprime num mesmo termo um continente de realidades díspares: dezenas de idiomas, centenas de grupos étnicos, uma ciclópica diversidade cultural, geográfica e histórica.

Em segundo lugar, Kapuscinski não trabalhava para um jornal ou revista, e sim numa agência de notícias. O correspondente de agência deve trabalhar em cima dos fatos do dia, contra o relógio, com um espaço exíguo (pelo padrão internacional, o limite é de seiscentas palavras) para resumir tudo que aconteceu e apurou durante uma jornada. Ao profissional de agência de notícias não é permitido ser furado pelos concorrentes. Ele deve sempre transmitir as notícias quentes: o golpe militar, a revolução, o massacre, a queda do governante. Sem dispor do luxo da reflexão prolongada, e sem espaço para expor nuances, aprofundar temas ou caprichar na escrita, Kapuscinski cobriu vinte e sete golpes e revoluções sob a ditadura do relato objetivo e simplificador: o quê, quando, quem, onde e por quê.

Por fim, nos anos 60 e 70, Kapuscinski não era funcionário de uma poderosa publicação da Europa ocidental ou dos Estados Unidos. Ele era o único correspondente na África de uma mirrada agência polonesa. Enquanto seus colegas de países ricos dispunham de prestígio (que lhes garantia a atenção de políticos locais, sempre querendo aparecer bem na imprensa das grandes potências) e dinheiro (que lhes facilitava a locomoção e a segurança), Kapuscinski representava um país remediado e tinha que se virar sozinho. Que potentado africano se disporia a falar com um jovem repórter polonês? E como fazer para, sem dinheiro, viajar centenas de quilômetros para cobrir um golpe de Estado num país do outro lado do continente?

A dureza das condições de trabalho de Kapuscinski transparece apenas de maneira indireta em O imperador. Ao defender um dos assessores de imprensa de Hailé Selassié das ameaças de um colega correspondente (que na verdade era um agente de uma empresa petrolífera italiana), Kapuscinski se aproximou da fonte que, cativada ao longo de anos, garantiu-lhe acesso a figuras-chave da corte etíope. Por figuras-chave entenda-se não os ministros, os governadores, os generais ou os nobres que cercavam Selassié e formavam as inúmeras cliques e facções em permanente disputa de poder. Kapuscinski buscou os funcionários que serviam de perto o imperador e o veneravam.

Com isso, o ponto de vista dominante em O imperador é o dos subalternos, dos que estão quase prostrados no chão, daqueles que contemplam o poder de baixo para cima, que sofrem seu peso e temem suas ordens: o serviçal encarregado de limpar os sapatos dos dignitários nos quais o cachorrinho imperial fez xixi; o que coloca almofadas sob os pés de Selassié quando ele senta em tronos imponentes, para evitar que suas pernas balancem de modo ridículo; o que se curva a sua frente para avisar que é tempo de se dedicar a outros afazeres.

O poder absoluto é apresentado pelo prisma daqueles que respeitavam e temiam Selassié, mas que puderam também captar com precisão, dada a proximidade, não só as manias e espertezas do imperador como também algo maior, que a todos ultrapassa: a lenta e violenta dissolução de uma autocracia.

A estratégia de dar voz aos silenciosos é, por si só, um achado jornalístico de grande eficácia. E que adquire alta voltagem literária pela forma com que Kapuscinski lida com essas vozes. Ele as apresenta com uma solenidade teatral, identificando-as somente pelas iniciais, para protegê-las de represálias dos novos poderosos, os que substituíram Selassié. Não por acaso O imperador teve adaptações teatrais na Polônia e na Inglaterra.

Cada voz de O imperador tem uma dicção própria. Mas todas compartilham as mesmas fórmulas de reverência, a mesma simpatia temerosa pelo imperador, os mesmos sentimentos de opressão e alienação e até elementos estilísticos, como a profusão de adjetivos, as frases longas e espiraladas que jamais esgotam os temas, deixando sempre uma incerteza ou uma dúvida no ar. Uma voz se engata à outra, esclarece um determinado meandro do poder e jamais expõe um panorama geral. Entre elas está a voz de Kapuscinski. O jornalista não tenta explicar, de cima para baixo, o pântano em que estão atolados seus personagens. Ele permanece o tempo todo imerso no coro, sem destoar dele com dados pretensamente científicos ou mais acurados: estatísticas, contextos históricos ou geopolíticos. Kapuscinski não adota o ponto de vista etnocêntrico no qual o europeu branco faz figura de sumidade, de bwana ou sahib capaz de mostrar quem são, no final das contas, os etíopes. Sua perspectiva é oposta: ele sabe apenas o que sabem os africanos que conviveram com Selassié.

Quando foi publicado na Polônia, em 1978, e na Inglaterra, em 1983, O imperador foi percebido não apenas como um relato jornalístico, mas foi visto como um livro duplamente exótico: seu tema era um país remoto, a Etiópia, e seu autor cidadão de uma ditadura stalinista, a Polônia. Isso fez com que O imperador fosse considerado uma alegoria. Ao falar da autocracia etíope, de seus ministros medíocres e corruptos, do medo disseminado, das pompas oficiais em contraste com a pobreza dominante, Kapuscinski na verdade estaria falando do stalinismo polonês, de seus burocratas aproveitadores, da repressão política, da apatia social. A Etiópia do livro serviria de metáfora para a Polônia stalinista.

Kapuscinski deu a entender que concordava com essa interpretação:

Escrevi O imperador para os jovens poloneses que têm uma experiência política e psicológica definida, e que irão entender minha escrita metafórica. O texto é dois textos - o que se lê sobre a Etiópia e o que está debaixo dele. É uma forma de escrita secreta, um texto que é como um código secreto da prisão.

E em seguida tomou distância dela:

Num nível mais amplo, contudo, O imperador não foi escrito somente para os poloneses. Ele é sobre política, sobre como uma mudança na situação modifica a natureza das pessoas que estão envolvidas nela. Em todos os lugares há política como a de O imperador. O livro foi adaptado para o palco na Inglaterra. No teatro, vi uma senhora chorando na sua escrivaninha no escritório do gerente. Ela havia sido demitida numa disputa de poder. Perguntei: "Por que você está chorando?". "Por que você me pergunta?", ela disse. "Você escreveu a respeito em O imperador." Há um pouco disso em todas as situações nas quais você tem uma hierarquia, uma estrutura política, um chefe, coisas mudando na sua vida. Há um potencial para a autocracia na maioria das instituições sociais.

O tempo passou e a Etiópia e a Polônia continuam longe, o que permite constatar que O imperador não envelheceu. Sua forma literária permanece surpreendente, na medida em que representa uma estrutura social - a da subordinação ao poder pessoal - ainda em vigor na periferia capitalista. E outro tema do livro, o que diz respeito à economia, pode ser percebido agora com maior nitidez: o da miragem do desenvolvimento. Na Etiópia, tal como relatada pelos criados palacianos de O imperador, Selassié é visto como o grande modernizador, como o monarca antenado com as últimas novidades tecnológicas, que busca o investimento das metrópoles para arrancar o país do atraso e situá-lo no panorama contemporâneo. Tal programa, brandido ao longo de décadas em todos os quadrantes do mundo subdesenvolvido por políticos de todas as cores, não fez com que o progresso chegasse. O subdesenvolvimento, como já se disse, não é um estágio, é um estado.

A continuidade do subdesenvolvimento é abordada sob outro ângulo em O imperador. As vozes orquestradas por Kapuscinski contam que Selassié não foi derrubado do poder. Foi seu poder que se dissolveu. Quando a crise chegou à maturação, havia três facções na corte: os "carcereiros", que advogavam mais repressão; os "comensais", que propunham diálogo e concessões aos rebeldes; e os "homens-rolha", que "flutuavam ao sabor da corrente, como um bando de arraias-miúdas que se deixavam levar para todos os lados e que se empenhavam em sobreviver a qualquer custo". As três facções, que surgem em qualquer época de crise, são sinal de que a política deixara de funcionar, que não produzia mais resultados. E, ao apoiar simultaneamente as três facções, Selassié demonstrou que já não exercia o poder.

Os revoltosos a princípio são ouvidos ao longe. Depois, dentro da cidade. Em seguida, nas imediações do palácio. Logo, eles estão na sala de Selassié. O velho imperador os apóia, e os revolucionários exercem o poder em seu nome. Ou, como observa um velho funcionário, o Exército "se rebelara lealmente". Na última cena, patética, Selassié sai do palácio num fusca. É o único momento em que esboça uma reação, mas logo aceita a situação e entra no carro. Selassié morre na prisão ainda imaginando que era imperador: "A vida de quem está no alto nunca é calma".

O jornalismo praticado por Kapuscinski em O imperador foi também objeto de críticas e restrições. Os críticos dizem, em substância, que o relato não é confiável. E dão alguns dados: ao contrário do que está no livro, Selassié lia, e muito, no seu idioma, o amhárico, e em francês, livros de sua boa biblioteca; o imperador também escrevia e assinava documentos; as formas de tratamento referentes ao soberano, "benevolente majestade", "venerável amo" etc., não eram usadas na corte porque simplesmente não existem na Etiópia; não é verdade que Endelkachew Makonen, um dos ministros de Selassié, tenha viajado com ele ao Brasil, em 1960, quando houve uma tentativa de golpe na Etiópia; e, enfim, que as iniciais dos entrevistados em O imperador não correspondem a nenhum dos funcionários de Selassié.

O jornalismo praticado por Kapuscinski em O imperador foi também objeto de críticas e restrições. Os críticos dizem, em substância, que o relato não é confiável. E dão alguns dados: ao contrário do que está no livro, Selassié lia, e muito, no seu idioma, o amhárico, e em francês, livros de sua boa biblioteca; o imperador também escrevia e assinava documentos; as formas de tratamento referentes ao soberano, "benevolente majestade", "venerável amo" etc., não eram usadas na corte porque simplesmente não existem na Etiópia; não é verdade que Endelkachew Makonen, um dos ministros de Selassié, tenha viajado com ele ao Brasil, em 1960, quando houve uma tentativa de golpe na Etiópia; e, enfim, que as iniciais dos entrevistados em O imperador não correspondem a nenhum dos funcionários de Selassié.

Por vias tortas, as críticas atualizam a questão das formas jornalísticas. O modelo anglo-saxão dá preferência a fontes identificáveis, à narrativa linear e cronológica, entremeada de parágrafos contextualizantes. Mas esse não é o único modelo e muito menos tem o estatuto de tábuas da lei. O que Kapuscinski faz em O imperador é subordinar a forma ao tema, dando voz aos vassalos e interferindo minimamente, ao menos de modo direto, na narrativa. Com isso, ele se afasta não só de Evelyn Waugh como de seu conterrâneo Joseph Conrad, dois ficcionistas que escreveram extensamente sobre a África. E consegue resultados que não são melhores nem piores, são outros: em vez de falar em nome dos africanos, deixa que eles falem.

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