10.1.06

Bob Marley e Rastafarianismo

Por Fernando Gabeira

Fevereiro foi o mês de Bob Marley, nascido no dia 6, na freguesia rural de St. Ann, na Jamaica. Não foi possível escrever sobre ele. Primeiro os fatos, depois os mitos. Também nasci em fevereiro e comemorei meu aniversário em Anapu. Só agora, abrindo caminho entre os temas da atualidade, posso me dedicar a esse artista, que vi no verão sueco com impacto tão inesquecível como o do sol da meia-noite.


Estávamos no meio da década de 70. O reggae era uma lufada de ar fresco para quem tinha saudade dos trópicos. Era possível ver como encantava os jovens negros, em luta pela identidade cultural, e a classe média, seduzida por uma visão mais que liberal, religiosa, sobre a maconha.

Olhando para trás, hoje, quando vejo meninas de 17 anos ouvindo Bob Marley, ainda reconheço essa atração. Mas é necessário dar um novo peso à qualidade estética da música caribenha. A maneira como o reggae se propagou no Brasil, ganhando base popular na Bahia e no Maranhão, tem muito a ver com a busca da identidade do povo negro. Tanto o bairro da Liberdade, em Salvador, como os inúmeros recantos de São Luís onde o reggae era a atração expressam essa busca que transcende fronteiras. Durante o recesso parlamentar, li a biografia de Bob Marley escrita por Timothy White, editor da "Billboard". Com 542 páginas, é generosa em detalhes sobre a vida do cantor e seu lado místico.

Essa parte talvez seja a mais vulnerável da biografia, pois não investiga o que aconteceu com as idéias religiosas do cantor, com a utopia mística do rastafarianismo -o livro tem episódios sobrenaturais, dando a entender que estamos diante de um Marley dotado de poderes extraordinários.

White admira tanto Marley que nos projeta a vida de um santo. Desde o fato de Bob ser neto de um "obeah", espécie de curandeiro jamaicano, até a posse do anel do imperador da Etiópia, todos esses detalhes são organizados para celebrar uma religião que não deu tão certo quanto a trajetória estética do cantor.

A utopia rastafári nasceu também das idéias de Marcus Garvey (1880-1940), um jamaicano que andou pelos EUA, foi preso e voltou ao seu país defendendo a tese de que os descendentes de escravos não encontrariam a salvação se não voltassem para a África.

"Olhem para a África", dizia ele, "onde um rei negro será coroado: ele será o redentor".

Isso foi em 1927 e, três anos mais tarde, Tafari Makonnen ganhava o título de soberano etíope e se tornava imperador com o nome de Hailé Selassié. O império tornou-se uma "nova Jerusalém" para os rastas. São algumas das idéias que Marley iria abraçar e que hoje são apenas uma ruína.
Selassié jamais acreditou na história de rei dos reis, embora a adoração jamaicana o deixasse sensibilizado. Ele foi recebido por 100 mil pessoas quando visitou Kingston e decidiu destinar terras para os rastas que quisessem voltar à África. Era uma forma de agradecer àquela adoração sem se envolver mais profundamente.

Os biógrafos de Marley não acompanharam o futuro de sua utopia religiosa. Mas a imprensa, sim. Em fevereiro, auge das comemorações, foram feitas visitas à cidade de Sashemene, na Etiópia.

Como estão hoje os rastas que resolveram deixar a Jamaica por essa volta à terra de origem?

A primeira impressão de Shashemene é que existem duas cidades. Uma dos africanos, com quase 100 mil habitantes. A outra, a cidade dos rastas, com 1.500. As terras dadas por Selassié foram envolvidas pelo crescimento de Sashemene, os rastas espremidos e derrotados pela grilagem.

Muitos deles são hostilizados pelos africanos quando andam em Shashemene. Os 200 hectares de terra fértil, a 200 quilômetros ao sul de Addis Abeba, encolheram, e hoje a comunidade rasta depende da ajuda de seus fiéis no exterior. Um ex-banqueiro norte-americano quer construir um complexo turístico. Os bonés rastas são feitos para a venda na Europa e há um templo, a Igreja do Tabernáculo. Na entrada, alguns garotos vendem maconha, e no templo há uma inscrição: "É proibido fumar ou consumir drogas". O cartaz avisa que não é droga, mas um remédio.

Os "dreadlocks" são a marca dos rastas, mas um deles confessa que os africanos não gostam desse tipo de cabelo: "Temos de estar atentos. Às vezes, uma simples palavra mal dita serve para que nos ataquem em bandos".

Os sonhos de Marvey e Marley no que diz respeito à volta para a África começaram a morrer também quando Selassié foi morto pela revolução que realizou uma reforma agrária radical. As terras foram reduzidas para 50 hectares, e os vizinhos, que consideravam os rastas protegidos do palácio imperial, avançaram sobre suas posses pilhando o que puderam.

Uma matéria do "Le Monde", de Jean Phillipe Rémy, conta que a esperança não morreu. Um casal da Martinica acabava de construir uma casa nova na região e, nas horas vagas, redigia um guia de instalação na Etiópia, para os rastas francófonos.

O destino da comunidade rasta na Etiópia depende mais da venda de seus produtos e do que pode atrair fiéis dos EUA e da Europa. Não sei se hoje, em Kingston, se fala em volta à África. O fato é que Marley teve um grande papel elevando a auto-estima dos negros, contribuindo para um debate sobre a e deixando maravilhosas canções.

Ele emergiu no mundo de violência urbana de Kingston, mas nunca conseguiu se libertar dele. Na minha visão dos anos 70, vendo Peter Tosh ferido pela polícia, imaginava que grandes nomes do reggae eram vítimas. Lendo White, percebo que a indústria de discos montada era violenta, e que tanto Marley quanto Tosh também usaram a violência -Bob, para tentar receber direitos autorais que lhe eram negados.

Essa atmosfera mística que se criou em torno dele talvez o tenha estimulado a exercer sua liberdade acima da sensibilidade comum, como faria ao encontrar-se com outras mulheres, no mesmo hotel em que se hospedava com Rita.
Felizmente, Bob Marley não era um santo. Com tantas qualidades humanas e estéticas, a santidade não é um bem supérfluo?

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