14.1.06

O Imperador

O IMPERADOR
DE RYSZARD KAPUSCINSKI

O renomado correspondente Ryszard Kapuscinski traça um retrato da extravagância e da corrupção de que a corte do imperador Hailé Selassié I desfrutava enquanto a Etiópia se tornava um dos países mais miseráveis do mundo. Com posfácio de Mario Sergio Conti.




Selassié: relatos da corte

De Guss de Lucca
A história de O Imperador começa, de fato, 15 anos antes de Ryszard Kapuscinski retornar à Polônia para colocar no papel os depoimentos que viriam a formar um de seus mais célebres trabalhos.

O real início deste relato ocorreu durante a primeira visita do jornalista a Adis-Abeba, capital da Etiópia, em 1963, período em que trabalhava como correspondente internacional de uma agência de notícias e era o único responsável por todo o continente negro. Obrigado a viajar constantemente pelas nações africanas, Kapuscinski acabou testemunhando em sua carreira dezenas de revoluções e golpes de estado, dentre os quais fez parte o que destituiu o monarca Hailé Selassié I do trono etíope.

Mas é antes da revolução que derrubou o monarca que a história teve início, durante um grande banquete que estava sendo preparado por Selassié I para recepcionar os chefes de estado das nações independentes da África, o primeiro encontro da OUA, Organização da Unidade Africana. E se os preparativos da grande recepção já deixaram perplexo o recém-chegado, a ocasião deu a Kapuscinski a primeira oportunidade de entrar em contato com a cultura palaciana do soberano, que governava como "O Escolhido de Deus" uma nação de extremos: miséria absoluta da população, de um lado, luxo e ostentação da corte palaciana, do outro.

E enquanto os três mil convidados que chegavam assistiam ao show de fogos de artifício, o repórter testemunhava a massa de mendigos famintos que, do lado de fora do palácio, aglomerava-se em plena chuva, batalhando pelos restos de comida que os empregados despejavam de tempos em tempos em sua direção.

Anos mais tarde, com o fim do regime do imperador decretado e a nação envolta pelo caos de uma guerra civil, Kapuscinski retornaria a Etiópia com o objetivo de localizar os poucos representantes da vida palaciana que ainda não haviam sido executados ou trancafiados pelo atual governo.

Para concretizar seu objetivo ele buscou o auxílio de Teferra Gebrewold, ex-chefe de um dos departamentos do Ministério de Informação de Hailé Selassié, que se tornaria o guia do jornalista. Somente com sua ajuda Kapuscinski conseguiu extrair dos cortesãos os relatos que o ajudaram na construção de um retrato íntimo, distante da imagem mítica do "Rei dos Reis" da Etiópia.

Dentre os entrevistados estavam homens que haviam dedicado décadas de suas vidas à execução de tarefas no mínimo inconcebíveis para nós, leitores ocidentais, como era o caso do "cuco do rei", responsável por avisar o monarca de que havia outros compromissos à sua espera curvando-se diante dele, e seu "colocador de almofada", cujo trabalho era selecionar entre as 52 peças que possuía qual se adequaria mais ao trono em que Selassié viria a sentar-se.

Surpreendentemente, para quem tinha expectativa de que em tal tipo de corte os "funcionários" relatassem atitudes atrozes e sanguinárias do soberano, isso não ocorre: o livro não registra sequer uma crítica direta ao monarca, ao contrário, Hailé Selassié surge nestes relatos como um homem inteligente, ponderado e preocupado com o desenvolvimento de seus súditos.

E esse é sem dúvida o grande trunfo de O Imperador. Uma história narrada por quem só conhecia a vida como submissão e que contém tantas ou mais alusões às qualidades quase divinas do soberano quanto se esperaria de uma biografia vinda da própria elite palaciana, tamanho o condicionamento no qual viviam os súditos de Selassié.

Em uma das passagens que melhor retrata essa radical submissão, o autor descreve como o pai de um estudante universitário critica o filho por ter começado a pensar, pois "pensar, naqueles dias, era algo muito inconveniente, um defeito capaz de atrair sérias conseqüências, embora o digníssimo amo, em sua incessante preocupação com o bem-estar dos súditos, não poupasse esforços para livrá-los dessa inconveniência, desse defeito."

Mesmo já livres do antigo regime e distantes dos olhos e ouvidos de Hailé Selassié, os empregados do palácio mantinham-se fiéis ao imperador e à crença de que ele era incontestavelmente "O "Leão de Judá", o homem forte, que prezava apenas uma única qualidade nas pessoas, a lealdade.

É essa lealdade que Kapuscinski vai encontrando em cada depoimento e que contribui para matizar a imagem tirânica que os opositores atribuíam ao soberano, emprestando a Selassié os atributos de um mito, uma entidade que havia permanecido 44 anos no poder e que ganhara muito mais força após a morte.

Kapuscinski acabou por revelar ao mundo um lado da história palaciana que permanecera escondido dentro de seus portões por décadas, trazendo à tona uma poderosa e quase infalível rede de intrigas sustentada pelo imperador, cujo objetivo era manter a lealdade de seus súditos praticamente sem que ninguém precisasse policiá-los a todo instante.

Essa tarefa de vigília e denúncia era suprida pelos próprios funcionários, que temiam o expurgo mais que a morte, pois "como homens do palácio éramos pessoas importantes, de destaque, respeitadas, acatadas, e tudo isso nos dava uma sensação de importância e utilidade, de existirmos de fato, de fazermos parte do mundo (...) E então nosso amo podia (...) nos mandar de volta para casa para sempre. Numa fração de segundo tudo desaparecia e você deixava de existir."

Trágico e revelador, O Imperador traduz em linguagem leve e fluente um período único na história da Etiópia, criando em suas páginas a possibilidade de estabelecer vínculos com leitores das mais variadas origens, mesmo aqueles que nunca tenham se aproximado de uma obra de jornalismo literário.

"Um trono só dá dignidade quando contrasta com a humildade dos que o cercam; é a humildade dos subordinados que aumenta a importância da cadeira real e lhe dá sentido."
(citação de W.A-N, criado de Hailé Selassié I)

Ryszard Kapuscinski nasceu em 1932, em Pinsk (hoje Bielo-Rússia), então pertencente à Polônia. Desde 1954 é repórter da PAP, a agência de notícias polonesa, encarregado de coberturas no exterior, sobretudo na África e na América Latina. De 1964 a 1980, realizou matérias sobre 27 revoluções, golpes de Estado e insurreições diversas.

Nenhum comentário: